Bruxaria marca novo filme de Jeferson De

Jeferson De não esquece o primeiro filme de terror que viu na vida, no cineclube que seu pai metalúrgico mantinha para exibir filmes aos colegas em Taubaté. Foi “A Dança dos Vampiros”, de Roman Polanski. Idealizador do manifesto Dogma Feijoada, uma análise histórica sobre a produção audiovisual dos negros no Brasil, ele estreou em longas em 2010 com “Bróder”, história de três amigos de infância no bairro do Capão Redondo, em São Paulo, que seguiam diferentes destinos, marcados pela pobreza e pela violência.

Para seu segundo longa, com o título provisório de “Celulares”, filmado no início do ano em Florianópolis, a guinada não podia ser maior. Trata-se de um suspense psicológico sobre uma turma de amigos que desaparece misteriosamente no Parque Florestal do Rio Vermelho, região de mata densa e protegida dentro da capital catarinense – um lugar onde pessoas já desapareceram e corpos já foram encontrados.

A polícia encontra os celulares dos jovens, e é a partir dos vídeos feitos por eles nos aparelhos que vai elucidar o mistério, envolvendo as lendas de bruxaria da região. “Nenhuma tecnologia sobrevive quando a natureza fecha. E, como a gente sabe, qualquer jovem de hoje em dia, quando perde os seus aparelhos eletrônicos, não é ninguém”, brinca o diretor. A história se passa em três tempos: em 1747, época dos primeiros rituais de bruxaria; num passado recente, quando os jovens se embrenharam na floresta; e no presente, quando as investigações estão sendo conduzidas.

Da senzala para a floresta

Pela primeira vez, Jeferson é o único negro da equipe – mas, por outro lado, nunca trabalhou com tantas mulheres, na frente e atrás das câmeras, entre elas, as estrelas Maria Fernanda Cândido e Bruna Linzmeyer. “Eu quis sair da minha zona de conforto. Antes de eu ser um artista negro, eu sou um artista. Nesse sentido, me sinto conectado ao Steve McQueen”, diz citando o diretor britânico, negro como ele, que fez dois longas com protagonistas brancos antes de vencer o Oscar de melhor filme por “12 Anos de Escravidão”.

Mas a guinada não foi feita de caso pensado. No início, Jeferson tinha em mãos uma história de terror pautada na questão negra. Em sua história original, um grupo de adolescentes, nos dias de hoje, ia a uma rave numa fazenda, no interior de São Paulo, onde muitos escravos trabalhavam no século 19. Ao saber da assinatura da Lei Áurea em 1888, o dono da fazenda se revoltou e ordenou que se queimassem todos eles numa senzala. Os espíritos desses escravos voltavam para atormentar os jovens. “Sinto uma energia muito pesada em lugares como esses. Eu devo ser a única pessoa que vai ao Pelourinho e chora quando está lá. É como um judeu que visita Auschwitz, algo muito sofrido”, diz o diretor.

Foi a corroteirista Cristiane Arenas, que também é mulher de Jeferson, quem sugeriu a mudança da senzala para a floresta catarinense, e dos escravos para as bruxas e feiticeiras que faziam seus rituais na capital catarinense (conhecida como Ilha da Magia) no século 18, herança da cultura açoriana em Florianópolis.

Orçamento forçou mudança de SP para SC

“Celulares” é, portanto, o resultado de uma nova configuração dos filmes brasileiros, em que o produtor ganha mais espaço como autor do projeto, influenciando a própria história inicial para adaptá-la às melhores condições de produção. O filme é um B.O. (baixo orçamento) – sua verba para produção e finalização é de R$ 940 mil –, sem contar o dinheiro do lançamento; o filme será distribuído pela Downtown em parceria com a Paris Filmes e terá apoio da Globo Filmes. Segundo Cristiane, para esse orçamento, Florianópolis foi a opção certa. “São Paulo ficou inviável. A gente teria que filmar em locações muito distantes uma da outra. Só para filmar algo em volta da Paulista, por exemplo, isso tem um custo alto de estacionamento para todos os carros da equipe”, explica Jeferson.

Em Floripa, a equipe se concentrou em poucas locações, como o Parque e a Lagoa da Conceição – o cenário da delegacia foi construído no bairro que circunda o parque. O período de filmagem também foi digno de filme de guerrilha – 18 dias contra 30 de “Bróder”. Daniel Filho, que Jeferson chama de “meu tutor e amigo”, faz uma participação especial como pai de um dos garotos desaparecidos.

A mudança de tempo da história e o enfoque nos celulares também permitiram a entrada da Samsung no projeto – em troca de ter os celulares da marca no filme, a empresa colaborou financeiramente no projeto, todo rodado com duas câmeras RED Epic de última geração.

Terror com bruxaria

Para mergulhar nas histórias de bruxaria de Floripa, Jeferson e Cristiane contaram com a ajuda da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Algumas histórias os impressionaram bastante, como a da menina que foi encontrada sem olhos amarrada a uma árvore; e a de dois meninos que brincavam de cavar um buraco numa duna na praia quando um deles caiu no buraco e a areia misteriosamente o encobriu, engolindo-o para todo o sempre. No Parque do Rio Vermelho, eles viram muitas oferendas – e o parque leva esse nome porque as algas deixam o rio com uma coloração rubra, lembrando o sangue que (pouco) se vê no filme.

Maria Fernanda Cândido, que interpreta uma bruxa, trocando ideias com a corroteirista Cristiane Arenas

As histórias de bruxaria fascinaram Jeferson, que tem formação católica e hoje se considera “um cara ‘atento’; um homem de fé, mas cartesiano”. Antes das filmagens, Cristiane, uma parte da equipe de produção e algumas atrizes visitaram algumas bruxas que ainda atuam na região. “Nós fomos buscar uma permissão para filmar ali”, conta ela. “Eu aprendi com os manos do Capão uma frase: você tem que saber chegar. Não importa se é no Capão, na Oscar Freire ou no meio do mato”, diz Jeferson. Mas só depois das filmagens terminadas é que ele se deixou convencer pelas colegas a visitar uma das bruxas. Na conversa, sem que ele falasse nada, ela lembrou que a avó de Jeferson era benzedeira.

Mais do que as bruxas locais, ele se inspirou na longa e desconhecida tradição do terror brasileiro, do clima gótico de Zé do Caixão ao “terrir” (terror com humor) de Ivan Cardoso – um de seus filmes preferidos do gênero é “As Sete Vampiras” (1986) –, passando pelo mais jovem Dennison Ramalho, diretor dos curtas “Nocturnu” e “Ninjas”. Ao mesmo tempo, ele viu todos os filmes das franquias “Pânico” e “Crepúsculo”, que têm em comum com seu filme o universo jovem.

O elenco é quase todo catarinense, incluindo Bruna Linzmeyer, 21, que viveu a autista Linda da novela “Amor à Vida” e faz Diana, a protagonista. “Eu nem sabia que ela era de Santa Catarina. Fomos vê-la no teatro e eu falei para a Cris: nossa, ela tem um beição! É negona como eu”, brinca Jeferson, ignorando a pele superbranca da atriz. Para viver a mãe de Diana, uma mulher ligada às feitiçarias da ilha, eles escolheram Maria Fernanda Cândido pela semelhança física com Bruna e após vê-la na peça “A Toca do Coelho”. “Eu queria uma atriz que fosse bonita, mas que enfiasse o pé na lama. E nessa peça, ela estava completamente sem maquiagem, o que me impressionou muito”, diz ele.

Enquanto finaliza “Celulares”, Jeferson já se empolga com os próximos projetos. O primeiro é “Contramão”, adaptação do romance do gaúcho Henrique Schneider, um road movie sobre um executivo que comete um erro, foge da cena do crime e começa uma jornada desesperada e paranóica. O projeto será com a Contraponto, a mesma produtora de “Celulares”.

Mas o projeto dos seus sonhos é renovar a leitura de um mito feita há quase 40 anos por Cacá Diegues: Chica da Silva, nas palavras de Jeferson, “a mulher mais poderosa da história desse país”. “Francisca”, que deve render filme e minissérie, será baseado no livro “Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes”, de Júnia Ferreira Furtado, pesquisadora da UFMG, lançado em 2003.

 

Por Thiago Stivaletti

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