O cinema fora do armário

É sempre difícil classificar um determinado cinema como gay. Mas é inegável que os filmes com temas e personagens do universo LGBT estão passando por uma saudável evolução no cinema brasileiro. Se até bem pouco tempo atrás a grande questão era sair do armário e se assumir perante à sociedade, agora já existe uma naturalidade que leva os diretores a buscarem novas questões. Ser gay não é mais uma questão, mas uma premissa para outras histórias.

Coincidência ou não, em fevereiro de 2014, dos quatro longas brasileiros selecionados no Festival de Berlim, três traziam personagens gays. “Praia do Futuro”, de Karim Aïnouz, trouxe Wagner Moura em seu primeiro papel gay em fortes cenas de sexo, numa história que trata de exílio e deslocamento emocional. Foi visto por 127 mil espectadores quando estreou no país.

“Castanha”, de Davi Pretto, um interessante híbrido de ficção e documentário sobre um transformista da noite de Porto Alegre, enfoca o personagem, a relação com a mãe e sua paixão por teatro sem pôr o foco sobre sua sexualidade.

Cinema e novela como transformadores de comportamentos 

Mas o grande caso de sucesso do ano foi o drama juvenil “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, de Daniel Ribeiro, história de um menino cego que se encanta com um novo rapaz que entra em seu colégio. O filme começou o ano vencendo o principal prêmio da sua mostra em Berlim e terminou sendo o selecionado do Brasil ao Oscar. O sucesso do longa começou antes mesmo de ele ser rodado. Daniel já havia dirigido um curta com a mesma história, “Eu Não Quero Voltar Sozinho”, que atualmente está perto da marca de quatro milhões de visualizações no YouTube. O interesse pelo curta preparou a grande expectativa pelo longa no país inteiro – e espectadores de todos os cantos do Brasil pressionaram produtores e distribuidores para que ele estreasse em cinemas dos Estados mais distantes.

“Muitos adolescentes me dizem que o filme os ajudaram a se descobrirem, ou a introduzirem o assunto com os pais”, conta Daniel, 32 anos. Depois de uma palestra, um rapaz lhe contou que era evangélico fervoroso e militava contra os gays, mas tomou coragem para se assumir após ver o curta. Separou-se da mulher e, quando estreou o longa, levou o filho de 12 anos ao cinema para ver com ele.

“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, de Daniel Ribeiro: sucesso em 2014 e o filme escolhido pelo Brasil para uma vaga ao Oscar de filme estrangeiro

Além de levar 190 mil pessoas aos cinemas, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” foi selecionado para mais de 70 festivais e coleciona 33 prêmios. Foi vendido para 24 países, incluindo territórios com pouca tradição de cinema brasileiro, como Taiwan, Tailândia, Israel e Hong Kong. Um dado parece revelador do machismo latino: na América Latina, só a Costa Rica comprou o filme até agora.

A maior conquista foi o mercado americano, onde o longa estreou em oito cidades. Daniel e a produtora do filme, Diana Almeida, passaram duas semanas em Los Angeles participando de eventos no esforço de emplacar o filme numa das cinco disputadas vagas do Oscar de filme estrangeiro. O diretor diz que sabia que a disputa seria grande e afirma que não tinha a expectativa de ver o longa chegar lá, o que acabou realmente acontecendo. O filme ficou fora da disputa.

Para Daniel, um grande catalisador da aceitação dos personagens gays entre o público são as novelas da Globo – atualmente, boa parte dos folhetins possuem personagens gays, e nem sempre nos papéis cômicos. Félix, o vilão vivido por Matheus Solano na novela “Amor à Vida”, caiu nas graças do público e mereceu final feliz, com direito ao aguardado beijo com o namorado. “A TV está criando personagens cada vez mais palatáveis, e uma coisa vai influenciando a outra”, diz Daniel.

Os atores Fabio Audi e Guilherme Lobo, de “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, com o diretor Daniel Ribeiro, no Festival de Guadalajara, em março de 2014 © Natália Fregoso

Festivais ajudam a quebrar preconceitos

Um bom termômetro das mudanças no perfil dos filmes LGBT é o Mix Brasil, o mais antigo festival do gênero no país, criado em 1993. Nas três primeiras edições, o Mix só exibiu curtas experimentais, e com o tempo foi se abrindo para filmes de perfil mais comercial e longas-metragens. A produção de filmes brasileiros do gênero cresceu tanto que, em 2014, pela primeira vez, o festival reservou uma competição específica para os médias e longas-metragens brasileiros. Trinta longas nacionais chegaram para seleção, e destes, onze foram selecionados. O vencedor foi o documentário “Gazelle – The Love Issue”, de Cesar Terranova, retrato do artista brasileiro Paulo “Gazelle”, responsável por retratar a cena noturna gay de Nova York, Londres e São Paulo.

“Há alguns anos, sentimos uma profissionalização cada vez maior dos curtas de tema LGBT. Esse movimento cresceu e agora chegou aos longas. Boa parte desses filmes agora ganha editais públicos de financiamento, que estão cada vez mais abertos a esses projetos”, explica André Fischer, um dos idealizadores e codiretor do Mix. “Acho que isso não deixa de ser uma resposta da comunidade da cultura a essa onda conservadora que cresceu nos últimos anos”.

Cena do documentário “Gazelle – The Love Issue”, de Cesar Terranova, vencedor do festival Mix Brasil do ano passado

Segundo Fischer, o perfil dos filmes selecionados também se transformou bastante. “Nem selecionamos mais os filmes que trazem apenas personagens querendo se assumir. Hoje não dá pra falar só disso sem trazer outras questões”.

Neste ano, o Mix bateu novo recorde de público. Em 2013, foram 48 mil espectadores somando o público das edições de São Paulo e do Rio. Em 2014, 50 mil acompanharam a programação só na capital paulista.

Fischer é o primeiro a admitir a influência de “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” entre os filmes do gênero. “Pela safra recente de curtas, dá pra dizer que a nova onda depois dos filmes de favela vai ser a dos filmes sobre adolescentes gays”, aponta. Na seleção internacional, dois países que têm despontado com uma forte safra no festival são Israel e Argentina.

“Castanha”, de David Pretto, filme brasileiro com temática LGBT, distribuído para o mundo pela Figa Films

Brasil segue tendência internacional 

A ampliação do espaço para os filmes LGBT no Brasil segue uma tendência que se firmou pouco a pouco no cinema americano desde os anos 1990. Naquela década, um grupo de cineastas independentes conseguiu boa repercussão com seus primeiros filmes, entre eles, Gregg Araki (“The Living End”), Todd Haynes (“Veneno”, “Velvet Goldmine”) e Jennie Livingston (“Paris is Burning”).

Logo foi a vez de Hollywood inserir o tema na pauta e premiar com o Oscar atores que encarnavam personagens gays em histórias de combate ao preconceito – foi o caso de Tom Hanks (“Filadélfia”), Hillary Swank (“Meninos Não Choram”), Sean Penn (“Milk – A Voz da Igualdade”) e Jared Leto (“Clube de Compras Dallas”). Em 2005, “O Segredo de Brokeback Mountain”, de Ang Lee, quebrou um novo paradigma ao trazer um romance gay entre as figuras mais icônicas do cinema clássico americano: os caubóis.

André Fischer, realizador do Mix Brasil; evento ganha mais importância a cada ano

Com o tempo e uma maior aceitação do público, os produtores perderam o medo de retratar gays em situações negativas. Charlize Theron viveu uma prostituta lésbica que se torna uma serial killer em “Monster – Desejo Assassino” (2003), papel que também lhe rendeu o Oscar. Jim Carrey encarnou um golpista e presidiário gay na comédia “O Golpista do Ano” (2009), vivendo histórias de amor com Ewan McGregor e Rodrigo Santoro. Judi Dench interpretou uma professora obcecada pela colega (Cate Blanchett) no limite da psicopatia em “Notas sobre um Escândalo” (2006).

O gênero tem crescido também por uma questão de mercado. Os filmes gays têm grande apelo no circuito de festivais – além do Festival de Berlim, que possui até um prêmio específico, o Teddy Bear, muitos países possuem um festival específico para filmes sobre o tema, como o Mix no Brasil. Por conta disso, as world sales – escritórios internacionais que negociam filmes para festivais e se esforçam em vendê-los a distribuidoras locais para que sejam lançados no maior número possível de países – têm disputado mais fortemente os filmes do nicho.

“Olhe pra Mim de Novo”, documentário de Kiko Goifman e Claudia Priscilla, sobre uma mulher do sertão que se transforma em homem

Distribuidoras promovem filmes no mundo inteiro

Um bom exemplo é a Figa Films, criada em 2006 pelo brasileiro Sandro Fiorin, em Los Angeles. Em nove anos de atuação, a Figa ajudou a circular pelo mundo títulos como o documentário “Olhe pra Mim de Novo”, de Kiko Goifman e Claudia Priscilla, sobre uma mulher que fez cirurgia para se tornar homem no sertão nordestino.

Este ano, a Figa emplacou dois filmes do gênero em festivais: o já mencionado longa nacional “Castanha” e o dominicano “Dólares de Areia”, de Israel Cárdenas e Laura Amelia Guzmán, que está sendo considerado o grande retorno de Geraldine Chaplin ao cinema – apesar de nunca ter parado de atuar, há muito tempo ela não tinha um papel de tanto destaque.

Os diretores adaptaram um livro best-seller na França sobre um homem septuagenário que mantinha como amante um jovem mestiço de 20 anos numa praia do Caribe. Fã do trabalho dos diretores, Geraldine insistiu e os convenceu a estrelar o filme, alterando o sexo dos personagens: agora, uma mulher de 70 anos apaixonada por uma moça dominicana, que não esconde que o principal interesse da relação é o dinheiro. “Dólares” foi premiado no Festival de Chicago, foi exibido no Festival de Nantes (França) e encerrou a última Mostra Internacional de São Paulo, com a vinda de Geraldine à São Paulo para divulgar o filme.

Em “Dólares de Areia”, a atriz Geraldine Chaplin interpreta uma lésbica, em que a qualidade do filme superou a questão temática

“A questão de ser out [se assumir gay] é política, é importante, adoro sempre, mas já passou. Não é uma questão fundamental como era nos anos 90. Não é algo que vai chocar alguém”, diz Fiorin. “Antes, os filmes gays eram mal feitos, mal produzidos. Mas de uns quatro anos pra cá, temos encontrado filmes bons. Filmes sem clichês, que não tratam os gays como vítimas, a minoria coitadinha. São dramas e filmes sobre o tema que se encaixam em qualquer gênero.”

Ele conta que os filmes LGBT não chegam a sofrer censura, mas são submetidos a restrições quando são exibidos na TV a cabo ou em países de moral mais severa como Rússia ou os territórios do Leste Europeu. As companhias aéreas também costumam exigir o corte de cenas de sexo mais fortes ou de nu frontal.

A nova aposta da distribuidora é “Beira-Mar”, dos gaúchos Filipe Matzembacher e Marcio Reolon. Namorados, eles decidiram escrever separadamente sobre como se assumiram gays. A partir dessas versões, escreveram um roteiro de ficção sobre dois amigos que vão passar um fim de semana numa casa de vidro à beira de um mar frio e revolto, numa praia perto de Porto Alegre.

O distribuidor Sandro Fiorin, da Figa Films, localizado em Los Angeles, é um difusor do cinema brasileiro no mercado internacional

Um filme de adolescentes gays, no novo filão apontado por André Fischer, que pode muito bem repetir o sucesso de “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” no circuito de festivais internacionais.

 

Por Thiago Stivaletti

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.