Uma família contra o mundo

Uma mansão estranha. Talvez esteja inacabada. Talvez sejam as marcas do tempo. Ela é grandiosa, bonita, porém decadente, escura. A família que vive por lá parece absolutamente afinada a esta espécie de dupla natureza da casa, algo entre o majestoso e o obscuro. Levaremos um certo tempo para entendermos os laços entre os membros desta família, sem que nada nos seja realmente esclarecido. O pai, uma espécie curiosa de déspota hippie, rabugento, mas não exatamente antipático, vive cercado por mulheres das mais variadas idades. São todos apicultores. Estamos na Itália. Mas o francês e o alemão também nos chegam aos ouvidos. Vive-se ali uma outra vida.

A primeira imagem de “As Maravilhas”, vencedor do Grande Prêmio do Júri no último Festival de Cannes, o segundo longa de Alice Rohrwacher, integrante de uma nova e talentosa geração de cineastas italianos (Michelangelo Frammartino [“Le Quatro Volte”], Ascanio Celestini [“La Pecora Nera”], Alessandro Comodin [“L’Eté de Giacomo”] etc.), é iluminada pelos faróis que varrem a negritude da noite e parecem ameaçar a câmera conforme se aproximam. São caçadores, saberemos mais tarde. Quer dizer: o veículo não transporta os personagens principais deste filme, mas sim uma espécie de síntese do que veremos a seguir, o contraplano (ou, nesse caso, como jamais vemos os caçadores, o fora do quadro) que faz mover o longa, uma história sobre as angústias e esperanças de uma família bem particular em face de um outro mundo que ora a objetifica, ora a ignora, ora simplesmente não reconhece seu modo de vida.

“As Maravilhas” avança por meio de confrontos com este outro mundo: as motos dos meninos da cidade, a entrada em cena de Martin, a visita de um amigo do pai, e, sobretudo, a chegada de uma equipe de um programa brega de TV que dá nome ao filme e pretende sublinhar as belezas autênticas da região através de uma estranha espécie de concurso. O filme tenta então lidar com um certo estar no mundo: a ameaça diária que aquele modo alternativo de vida sofre, a agressividade das grandes mídias e insistência em uma museulização barata daquelas vidas… Isto se dá a partir não somente desta grandiosa família, mas, principalmente, do ponto de vista de Gelsomina, a filha mais velha, adolescente, a mais ligada à figura do pai, a mais suscetível aos chamados sedutores de um outro mundo.

“As Maravilhas” é um filme um tanto desequilibrado – algo que já marcava (em maior medida, é verdade) “Corpo Celeste”, a primeira obra de Rohrwacher. A direção da cineasta é por vezes imprecisa. Essa imprecisão não diz respeito somente às composições e enquadramentos, mas também ao foco da câmera, da montagem, e, por conseguinte, do próprio filme. Vez ou outra acompanhamos a câmera passeando pelo espaço, “flagrando” os diversos personagens, sem um ponto de chegada pré-determinado – mise-en-scéne, definitivamente, é um termo que não combina com este cinema. Gelsomina parece mesmo ser a nossa protagonista, embora ela saia muitas vezes em cena em nome da família e demais personagens. Ela também se vê enredada em diversos contratempos e possíveis linhas de desenvolvimento. Sem falar nos muitos interesses deste filme. Estas imprecisões acabam drenando a história desta família de qualquer senso de urgência.

Este não é um trabalho que prima pelo rigor estético ou narrativo, embora tenha seus momentos de fascínio. Urgência e beleza se sobressaem sempre que Rohrwacher se detém no cotidiano desta família, na carismática figura paterna, nas brincadeiras entre irmãs, na descrição da paisagem. A cineasta consegue também, é preciso dizer, um difícil equilíbrio entre a ingenuidade de Gelsomina e o folclore barato do programa televisivo. Neste sentido, aliás, Mônica Belluci, soberba como quase sempre, consegue ao mesmo tempo ser patética e mágica. Estas duas grandes palavrinhas ficarão com Gelsomina, maravilhada, porém consciente. Pois é: “As Maravilhas” tem lá o seu encanto.

 

As Maravilhas | Le Meraviglie
(Itália, 111 min., 2014)
Direção: Alice Rohrwacher
Distribuição: Pandora Filmes
Estreia: 16 de abril

 

Por Julio Bezerra

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