Raros ensinamentos

Em 1998, o premiado curta-metragista e animador francês Michel Ocelot estreia no longa-metragem em grande estilo. Com traços de extrema simplicidade e profundo encantamento, ele roteiriza, anima e dirige “Kiriku e a Feiticeira”, que rapidamente se transformaria num grande sucesso. A história apresenta Kiriku, um garotinho africano que aprende a falar, a raciocinar com clareza e a correr muito rápido, imediatamente após o seu nascimento. Logo ele se torna um dos elementos mais importantes na eterna luta que sua aldeia trava com Karabá, uma malvada feiticeira protegida por guerreiros de pedra. A trama mistura lendas africanas com elementos criados pelo próprio diretor, que passou sua infância na Guiné. O filme conquistou as mais importantes premiações em eventos de animação e de cinema infantil, incluindo o Grande Prêmio no prestigiado Festival de Annecy.

Foram necessários sete anos para que o pequeno africano ganhasse uma continuação, “Kirikou – Os Animais Selvagens”, desta vez, com o título em português grafando o nome do protagonista na sua forma original, com “ou” no final. Agora, sem o impacto da novidade, a repercussão do longa foi bem menor.

Mais sete anos se passaram para o lançamento do terceiro episódio protagonizado pelo esperto e carismático garotinho: “Kiriku – Os Homens e as Mulheres”, indicado ao Cesar 2013 de melhor animação, e que chega ao nosso congestionado circuito exibidor com justificáveis dois anos de atraso. Seu nome volta a ser escrito com “u” no final. A boa notícia é que, mesmo passado tanto tempo do primeiro episódio, o herói e seu criador continuam fidelíssimos às suas origens e tradições. Ocelot resiste com bravura em utilizar ostensivamente as inovações tecnológicas desenvolvidas de 2008 para cá. Que não foram poucas. A opção é, no mínimo, coerente, pois um dos maiores méritos desta série de longas é a simplicidade quase naif de seus traços, totalmente sintonizada com a própria ambientação da aldeia onde as histórias acontecem.

Ao priorizar o roteiro sobre a técnica, a série Kiriku se transformou num instrumento de resistência pacífica contra o domínio estrangeiro/mercadológico de desenhos produzidos com dezenas de milhões de dólares. E o faz exatamente da mesma forma que o herói enfrenta a tirânica Karabá: com astúcia, bom humor e muito jogo de cintura.

“Kiriku – Os Homens e as Mulheres” alinhava cinco histórias do personagem, todas contadas por seu orgulhoso avô. Na primeira, a bondosa mãe de Kiriku hospeda em sua residência uma mulher, cuja casa fora queimada por Karabá. Logo, porém, a hóspede se mostra das mais exigentes e desagradáveis, incapaz de um gesto de bondade para quem a acolheu. Kiriku e sua mãe, exercendo a mais profunda paciência, transmitem então ao público exemplos de solidariedade e tolerância. Na segunda, o desaparecimento de um velho habitante da aldeia preocupa Kiriku e sua mãe. Ao tentar ajudá-lo, o menino se defronta com um dos piores sentimentos humanos: a ingratidão.  A terceira história, provavelmente, a melhor, explora o sempre importante tema das diferenças. Kiriku encontra na savana um garoto todo vestido de azul. Como esta é a cor da roupa da maldosa Karabá, Kiriku, a princípio, sente medo, acreditando se tratar de um inimigo. Mas logo ele aprenderá a controlar a ansiedade de um julgamento precipitado e, principalmente, a desenvolver a sabedoria e a paciência suficientes para compreender a riqueza que se esconde sob as diferenciações. No penúltimo episódio, a aldeia de Kiriku é visitada por uma intrigante contadora de histórias que encanta o garoto. Logo ele aprende que existem duas formas de contar histórias: relatando-as ou inventando-as (seria um momento autobiográfico de Ocelot?). E, finalmente, no último segmento, Kiriku, sempre amparado pela doçura de sua mãe, aprende a tocar flauta para acalmar um bebê que chora amedrontado pelo vento. O instrumento surge como símbolo da identidade cultural de seu pai, que não aparece nas histórias. Invejosa, Karabá quer quebrar a flauta/herança de Kiriku, que vai desenvolver outra qualidade que a mãe lhe ensina: a persistência. “Se Karabá quebrar a flauta, faça outra”, ela ensina.

Paciência, bondade, doçura, resistência, altivez, identidade cultural… Realmente, Kiriku trabalha com valores que nem sempre vemos nos desenhos animados que dominam nosso mercado. Uma exceção digna de nota.

 

Kiriku – Os Homens e as Mulheres
Kirikou et les Hommes et les Femmes
França, 88 min., 2012
Direção: Michel Ocelot
Distribuição: Imovision

 

Por Celso Sabadin

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