O Grande Otelo

Tudo começa nas Minas Gerais, em 18 de outubro de 1915, na pequena cidade de São Pedro de Uberabinha, que mais tarde mudaria de nome para Uberlândia. É ali que nasce Sebastião Bernardo da Costa, que mais tarde mudaria seu nome para Sebastião Bernardes de Souza Prata. (Sérgio Cabral, seu biógrafo, questiona a data correta, que seria 1917, mas, como dizem, “publique-se a lenda”).

Garoto irriquieto, cheio de energia, tão pequenino quanto agitado, muito cedo demonstra uma vitalidade fora do comum, e um talento nato para cantar, dançar, representar, contar piadas, imitar.

Quem via seu riso fácil jamais imaginária que o menino sofria com o alcoolismo da mãe e com a ausência do pai, assassinado quando tinha apenas dois anos de idade. Sempre sorridente e muito comunicativo, gostava de se oferecer como guia da cidade para eventuais passantes e caixeiros viajantes que desembarcavam na estação de trem. E, por uma moeda a mais, ele ainda entretia os visitantes com algumas canções populares da época ou se aventurava a contar piadas que causavam tanto riso quanto constrangimento, em função da pouca ou nenhuma adequação com sua pouca idade.

Com tamanha desenvoltura, não chegou a ser surpresa quando a pequena Companhia de Comédias e Variedades Sarah Bernardt, vinda de São Paulo, passou por Uberabinha e se encantou com Sebastião a ponto de, literalmente, levá-lo embora. E com a permissão, por escrito, passada em cartório, de sua própria mãe, que cedeu à insistência do menino, que parece já ter nascido querendo brilhar no mundo dos espetáculos.

Na capital paulista, espanta-se com o tamanho da cidade e com a destruição deixada pelas bombas e morteiros da Revolução de 1924. É adotado pela família Parecis Gonçalves, tornando-se amigo inseparável da jovem filha do casal, Abigail, que o leva a tiracolo em suas aulas de canto e teatro. Sebastião acompanha de perto todas as lições, com olhos, ouvidos e sensibilidade totalmente abertos.

Certo dia, ao acompanhar Abigail a uma aula de canto, é convidado pelo professor da garota a fazer um teste de voz. O mestre ficou impressionado com que ouviu, e lhe disse que tinha potencial para interpretar o papel operístico de Otelo, quando crescesse. Sebastião ficou tão empolgado com o elogio que passou a se autodenominar orgulhosamente, inclusive na escola, Otelo Gonçalves.

Este também foi o nome que muitas vezes utilizou nas apresentações que, com a aprovação dos pais adotivos, passou a fazer em variadas companhias de teatro. Integrou-se na pioneira Companhia Negra de Revistas, grupo formado totalmente por talentos negros, uma verdadeira provocação na época. Sua orquestra era comandada por ninguém menos que Pixinguinha.

Tudo corre às mil maravilhas para o garoto, que chega a excursionar por todo o Brasil, recebendo críticas das mais elogiosas da imprensa. Até o dia em que sua inseparável Abigail vai estudar na Europa, e seus pais simplesmente “abrem mão” da paternidade adotiva de Otelo.

Passando pela dor quase insuportável de ser deixado de lado pelos próprios pais não só uma, como duas vezes, Otelo vira um menino de rua, dormindo em bancos de jardim, fazendo pequenos trabalhos, engraxando sapatos, e não raramente sendo recolhido pelo juizado paulistano ao Abrigo de Menores, no bairro do Paraíso. Foi ali que conheceu Eugênia de Queiroz, esposa do influente advogado e político Antonio de Queiroz, que lá estava para “adotar” uma ajudante na cozinha. Ela não conseguiu sua ajudante, mas se encantou com aquele menino franzino esperto, que sabia declamar poemas e contar piadas.

Adotado agora pela família Queiroz, Otelo estudou nos tradicionais Colégio Sagrado Coração de Jesus e Caetano de Campos, onde recebeu educação formal de qualidade, aprendendo inclusive noções de inglês e francês. Contudo, foi sob o jugo dos Queiroz que Otelo viu interrompida sua carreira artística. Pelo menos, momentaneamente. Seus novos pais davam prioridade total aos estudos, e proibiam o garoto de continuar atuando ou participando de companhias teatrais. Assim, o ex-Otelo Gonçalves passou a assinar Otelo Queiroz.

O que o menino jamais poderia supor é que, pela inacreditável terceira vez, ele seria deixado de lado pelos novos pais: acusado de roubar livros da biblioteca da sua nova família, Otelo foi internado no mesmo Colégio Sagrado Coração de Jesus onde antes estudava em regime de externato. Sem liberdade, de asas cortadas. Triste, desinteressou-se pelos estudos, suas notas despencaram e, mais uma vez, foi colocado para fora de casa.

Os Queiroz tentaram encontrar tutores para o garoto entre os amigos da família relacionados ao meio artístico. Sem sucesso. Otelo, seja lá qual for o sobrenome, estava mais uma vez entregue à própria sorte, e foi morar numa pensão na Avenida São João, jogado na dura realidade de ter de pagar suas próprias contas e prover seu sustento.

Em 1932, após muita insistência, consegue ser admitido na prestigiosa Companhia Jardel Jércolis, pai de Jardel Filho, e identifica-se totalmente com o alegre, festivo e colorido universo do Teatro de Revistas, estilo de grande sucesso por todo o Brasil. Porém, sua função era de ajudante geral, sem direito a nenhum tipo de estrelato.

Viajou pelo país como ajudante de Jardel, até que finalmente conseguiu, em 1935, estrelar um número musical em sua trupe. Como neste número ele cantava em inglês, trajando fraque e cartola, foi anunciado ironicamente à plateia como “The Great Otelo”. Mas ninguém prestou muita atenção no pequeno rapaz, totalmente eclipsado pelas curvas e pelo gingado da bela morena Nair Farias.

No ano seguinte, uma nova porta se abre para Otelo: o cinema. Após receber alguns convites que nunca deram em nada, a presença inconfundível de “Great” Otelo finalmente é estampada na eternidade do celuloide. Porém, por poucos segundos. Sua brevíssima estreia nas telas se resume a uma minúscula participação no filme “Noites Cariocas”, uma produção da Cinédia, onde entra mudo e sai calado. Novamente, ninguém viu, e parecia que o sucesso jamais lhe daria as caras.

Otelo começa a ficar assombrado pela maldição que atinge a maioria dos talentos mirins, que quase nunca vingam após a idade adulta. Mas tudo iria mudar. Naquele mesmo 1936, a recém criada empresa cinematográfica Sonofilmes e o produtor norte-americano Wallace Downey (que já havia produzido o grande sucesso “Alô Alô Brasil” para a Cinédia) veem em Otelo o tipo ideal para contracenar com o já consagrado comediante Mesquitinha, em seu novo filme. E com apenas 21 anos, Otelo estreia. Agora “de verdade” nas telas com a comédia musical “João Ninguém”, dirigida pelo próprio Mesquitinha, e tendo no elenco nomes como Paulo Gracindo, Ary Barroso e Dircinha Batista.

Dois anos depois, um novo e marcante sucesso, desta vez nos palcos. Os aplausos e as críticas positivas voltaram novamente a fazer parte de sua vida graças ao dueto que montou com a cantora Déo Maia, no número musical “No Tabuleiro da Baiana”. Um sucesso que chegou aos olhos e aos ouvidos do empresário Joaquim Rolla, proprietário de uma das mais famosas casas noturnas não só do Rio de Janeiro como também da América Latina: o luxuoso e badalado Cassino da Urca.

Em 1938, Rolla lhe oferece trabalho fixo e Otelo, agora já definitivamente Grande Otelo, decide mudar legalmente seu nome para Sebastião Bernardes de Souza Prata, trocando Bernardo por Bernardes, desprezando o Costa, e adotando um apelido de seu pai, Prata. É com este novo nome, mais pomposo, que assina contrato com o Cassino da Urca. Ali, de acordo com suas próprias palavras, foi “o primeiro negro a entrar pela porta da frente”, já que a entrada de negros era proibida.

Talvez até sem ter noção precisa da importância do seu ato, Otelo estava abrindo caminho para vários outros talentos negros que viriam a seguir.

O próprio ator diz numa entrevista: “O Cassino da Urca era uma coisa maravilhosa. Maravilhosa porque com o dinheiro do jogo era possível fazer coisas muito bonitas. Inclusive a cortina era toda de espelhos. A cortina abria-se assim e a orquestra avançava num carrinho pra frente do palco, e debaixo subia um outro palco. E dos lados havia palco também. Então, quando todo mundo estava em cena, aquilo era um deslumbramento!”

Ágil, naturalmente divertido, vibrante, de voz estridente e sorriso largo, Grande Otelo passou a frequentar os palcos dos shows, cassinos, rádios e teatros da noite brasileira, trabalho que tocava paralelamente ao cinema, atividade da qual nunca mais se afastaria.

Na virada da década de 30, Grande Otelo passa a estrelar de dois a três filmes por ano, e chega a atuar, em 1942, na enigmática obra inacabada de Orson Welles, “It´s All True”, onde se torna amigo pessoal do grande cineasta norte-americano.

No ano seguinte, é contratado pela aquela que seria uma das mais bem sucedidas empresas de cinema de toda a história do Brasil: a Cinematográfica Atlântida, onde estreia em 1943 com o filme “Moleque Tião”, de cunho altamente autobiográfico. Ali, forma com Oscarito uma dupla cômica que se transformaria num verdadeiro ícone do próprio cinema do Brasil, e é peça fundamental na transformação do cinema do nosso país numa vibrante forma de entretenimento e difusão cultural para as grandes massas.

Na vida pessoal, contudo, sua situação é de tristeza e desespero: em 1949, Lúcia Maria, sua primeira esposa, se suicida, não sem antes assassinar, com veneno, seu próprio filho, enteado de Grande Otelo.

O ator busca no trabalho intenso uma forma de continuar a vida, atuando em nada menos que 26 filmes somente na década de 50.

Embora mais conhecido por suas impagáveis comédias, Grande Otelo também demonstra enorme talento para o drama, tendo sido dirigido por grandes mestres como Nelson Pereira dos Santos (“Rio Zona Norte”), Roberto Farias (“Assalto ao Trem Pagador”), Cacá Diegues (“Quilombo” e “Os Herdeiros”), Hector Babenco (“Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”), Júlio Bressane (‘Agonia” e “A Família do Barulho”) e tantos outros.

Seu talento lhe abre portas para filmar no exterior, onde acaba sendo dirigido por, entre outros, Franco Rossi, no filme “Uma Rosa para Todos”, filme em que contracena com Claudia Cardinalle e Nino Manfredi. É marcante também sua participação em “Fitzcarraldo”, produção alemã que Werner Herzog dirigiu na Amazônia.

Contudo, grandes doses de álcool aliadas a uma consequente irresponsabilidade em cumprir horários e cronogramas acabam fazendo com que Grande Otelo não faça tantos filmes e espetáculos quanto poderia. Entre os trabalhos que perdeu por ser considerado de difícil trato está o de empresar sua voz ao papagaio Zé Carioca, criação de Walt Disney para a política da boa vizinhança do governo dos EUA daquela época.

Com uma pitada de ironia, Grande Otelo tenta se justificar, durante uma entrevista: “Sebastião Bernardo de Souza Prata é diferente do Grande Otelo. O Grande Otelo é um ator, e o Sebastião Bernardo de Souza Prata é um cidadão brasileiro preocupado completamente com todos os problemas do Brasil. Porque todos nós, queiramos ou não queiramos, de qualquer maneira, a gente se preocupa, por menos que a gente queira. E isso me embaratina às vezes e eu não tenho vontade de trabalhar. Fico meio desanimado”.

Talvez ele fosse acometido da incurável “preguiça” que assolava o personagem Macunaíma, que o próprio Otelo viveu no filme de Joaquim Pedro de Andrade, em 1969, de maneira inesquecível. Talvez não: afinal, entre filmes, telenovelas e minisséries para TV, Grande Otelo somou mais de uma centena de títulos em sua bagagem de ator, e manteve-se na ativa até a data de sua morte, em 1993, quando sofreu um enfaro fulminante ao desembarcar na França, onde receberia uma homenagem no Festival de Cinema de Nantes.

 

Por Celso Sabadin, crítico de cinema

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