10º Fest Aruanda reafirma pluralismo e diversidade geográfica dos filmes

Nove longas-metragens compõem a mostra principal do X Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, que este ano se dará em novo cenário, o circuito Cinépolis, de 10 a 16 de dezembro. Na abertura, teremos a première paraibana de “Chatô”, o polêmico filme de Guilherme Fontes, e, no encerramento, outra première paraibana, a de “Chico, Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr. Sete títulos oriundos de diversas geografias e projetos estéticos compõem a mostra competitiva e, portanto, disputarão o Troféu Aruanda. Há filmes dirigidos por jovens realizadores e por cineastas experimentados.

O time jovem forma-se com a pernambucana Caroline Oliveira (“Invólucro”), o paranaense Aly Muritiba (“Para minha Amada Morta”) e o baiano João Gabriel (“Travessia”). No time dos mais experientes, estão os mestres Walter Lima Jr. (“Através da Sombra”), Júlio Bressane (“Garoto”) e Walter Carvalho (“Um Filme de Cinema”). No meio de campo, Roberto Berliner (“Nise, o Coração da Loucura”).

A Paraíba está inscrita na história dos dois Walter e de Júlio Bressane. Walter Carvalho aqui nasceu e aqui iniciou o projeto de “Um Filme de Cinema”, registrando imagens das ruínas de uma tristemente abandonada (e ocupada por caixas de marimbondos) sala de projeção. Uma sala que, outrora, proporcionara grandes alegrias a seus espectadores. Da Paraíba, Walter partiu para o mundo, interessado em sequenciar esta história de gente louca por cinema, como Bela Tarr, Ruy Guerra, Ken Loach, Jia Zhang-Ke, Lucrécia Martel, Gus van Sant, o próprio Bressane, Karim Ainouz e outros.

O filme de Walter Lima Jr. que será apresentado nesta décima edição do Fest Aruanda é “Através da Sombra”. Trata-se de narrativa de suspense, que recria o conto “A Volta do Parafuso”, do escritor Henry James (1843-1916). A atriz pernambucana Virgínia Cavendish (de “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes) é a alma do filme. Ela o produziu, em parceria com Maria Dulce Saldanha, e protagonizou, ao lado de grandes atores como Ana Lúcia Torre e Domingos Montagner. Walter garante ter construído “um filme mais de assombros, que de terror”. A história do ficcionista norte-americano foi transposta para uma fazenda de café no Estado do Rio.

O fluminense Walter Lima Jr. iniciou sua carreira de diretor na Paraíba, com o tocante “Menino de Engenho” (1965). Na equipe, participava um jovem carioca, de 17 ou 18 anos, chamado Júlio Bressane. O futuro diretor de “O Anjo Nasceu” e “Filme de Amor” estabeleceria, naquele momento, profunda relação com a terra de Augusto dos Anjos. Em especial, com o Lajedo do Pai Mateus, cenário de “São Jerônimo”, filme protagonizado pelo paraibano (de Pilar) Everaldo Pontes. Agora, Bressane volta ao Lajedo para ambientar a terceira parte de “Garoto”, um dos quatro filmes do projeto Tela Brilhadora (realizados, além de Bressane, pelos diretores Bruno Sáfadi, Rodrigo Lima e Moa Batsow).

A Paraíba marca presença, também, no elenco do denso e desafiador “Para minha Amada Morta”, do paranaense (nascido na Bahia) Aly Muritiba. Uma das protagonistas do filme é a atriz paraibana Mayana Neiva, que interpreta uma dona de casa evangélica e contracena com Fernando Alves Pinto e Lorinelson Vladmir. O filme vem fazendo carreira notável em festivais internacionais e no Brasil. A estreia de Muritiba – diretor do longa documental “A Gente”, sobre agentes penitenciários – na ficção é realmente digna de todas as atenções.

De Pernambuco, chega o documentário “Invólucro”, de Caroline Oliveira. Neste filme, duas paraibanas, a despachada Dudha, e a modelo Isabella Tucci, se somam à dermatologista niteroiense (nascida em Olinda) Astrid para compor instigante retrato da relação da mulher com seu corpo. Dudha já entrou nos anos, mas segue firme em seu propósito de cultivar o corpo esguio, curtir a praia, caminhadas e, principalmente, namorados bem mais jovens que ela. Sem complexos ou culpas. Para ela, fazer sexo é uma experiência “inenarrável”. Astrid também já entrou nos anos e foge do lugar comum. Trilha seus caminhos profissionais e existenciais, fugindo do que, muitas vezes, é imposto a mulheres de vida apenas doméstica (ou domesticada). Isabella, que nasceu mulher no corpo de um homem, é jovem, bela e vaidosa. Diz, satisfeita, ser “trans”. E reafirma sua posição de “mulher com pênis”. Por que investiria na construção de “uma vagina sem útero?”, indaga. O filme foi realizado em quatro territórios (João Pessoa, Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, Niterói, no Estado do Rio, e em Londres, capital inglesa).

Roberto Berliner, de 58 anos, é velho conhecido dos paraibanos, em especial dos campinenses. Afinal, ele filmou um de seus trabalhos mais conhecidos – o documentário “A Pessoa É para o que Nasce” – em Campina Grande, com as ceguinhas cantoras. Desta vez, o cineasta carioca buscou sua matéria-prima em outro Estado nordestino, Alagoas. Afinal, foi lá que nasceu Nise da Silveira (1905-1999), força-motriz de “Nise, o Coração da Loucura”. A psiquiatra, que trocou Maceió pelo Rio, ganha vida graças à sólida interpretação de Glória Pires. Em volta dela, estão os internos do Engenho de Dentro, um assustador “depósito de loucos” ao qual a médica dedicou sua vida. Buscou na arte um caminho para atenuar a brutalidade dos choques elétricos, tidos como única terapia possível, e a marginalidade e isolamento que marcavam a vida dos pacientes.

Aos fãs de Dona Ivone de Lara, um aviso: a enfermeira que no filme de Berliner é interpretada pela atriz Roberta Rodrigues dá vida (embora sem fazer alarde) à grande sambista e integrante da Ala de Compositores do Império Serrano. Dona Ivone foi colaboradora de todas as horas da Dra. Nise.

Da Bahia, chega o longa “Travessia”, do cineasta e publicitário João Gabriel. Para protagonizar esta história de desentendimentos entre pai e filho, o realizador escalou os atores Chico Diaz e Caio Castro. Em torno deles, giram Camilla Camargo (filha do sertanejo Zezé de Camargo) e os baianos Cyria Coentro, Caco Monteiro e Amaurih Oliveira. A cidade de Salvador, a febril capital baiana, ambienta esta trama em que desejos desencontrados são embalados por festas e drogas. Um acidente inusitado deixará por um fio o amor entre pai e filho.

Na noite de encerramento do Fest Aruanda, o público assistirá a um documentário sobre Chico Buarque, reserva artística e ética da nação brasileira. A première paraibana de “Chico, Artista Brasileiro” nos permitirá belo e enriquecedor encontro com um cidadão bem-humorado, inteligente, articulado, sincero e reflexivo. O produtor Jorge Peregrino representará o documentário que vendeu, em apenas duas semanas, 50 mil ingressos.

“Chatô” e Lima Duarte

O ator mineiro Lima Duarte, de 85 anos, desembarca em João Pessoa, na Paraíba, com agenda cheia. Além de receber homenagem do festival e apresentar sessão especial do filme “Sargento Getúlio”, ele promete “incendiar o debate” do filme “Chatô”, de Guilherme Fontes. Afinal, Lima foi colaborador de primeira hora da pioneira TV Tupi, emissora que Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (Umbuzeiro, PB, 1892 – São Paulo, SP, 1968), o polêmico magnata da imprensa brasileira, inaugurou em 1950. Mas o ator não teve participação nem no livro de Fernando Morais (“Chatô, o Rei do Brasil”), nem no filme de Fontes. Quem conhece a história de Chatô sabe que ela oferece munição para fazer ferver qualquer discussão, esteja em pauta um filme, ou um livro ou a imprensa brasileira.

O mais esperado dos debates do Fest Aruanda – o do filme “Chatô” – colocará na mesma mesa, além de Lima Duarte, o escritor Fernando Morais, os cineastas Guilherme Fontes e Vladimir Carvalho, o pro-reitor de Cultura da Universidade Federal da Paraíba, Chico Pereira, e a diretora do curso de História da mesma instituição, Monique Cittadino. Como Chatô é um dos tótens da história paraibana, o debate deve mesmo pegar fogo. Os pontos de partida, claro, serão o filme “Chatô” (visto, em três semanas, por 40 mil espectadores) e o livro “Chatô, o Rei do Brasil – A Vida de Assis Chateaubriand, um dos Brasileiros Mais Poderosos deste Século”, que já vendeu mais de 100 mil exemplares.

Quem é paraibano sabe o peso de Assis Chateaubriand na história do Estado e do país. E isto fica claro na parte inicial do polêmico filme que Guilherme Fontes construiu, ao longo de vinte tumultuados anos, a partir do monumental livro de Fernando Morais, “Chatô, o Rei do Brasil”.

A première paraibana de “Chatô” apresentará aos cinéfilos de João Pessoa a chance de conferir a “chanchada tropicalista” levemente inspirada no livro fernandiano. O tema que deverá render muita polêmica no debate será, claro, a recriação cinematográfica de obras literárias. No caso, a biografia escrita por Fernando Morais. Quem leu o artigo que o jornalista-escritor publicou no Caderno 2, do “Estadão”, no dia da estreia paulistana de “Chatô”, encontrará nas entrelinhas ricas sugestões e questionamentos.

Vale lembrar que Morais abre seu livro lançando mão de recurso literário: Chatô sofre grave lesão neurológica (uma trombose dupla) e delira. Vê seu corpo e o da filha Teresa nus e pintados de vermelho e azul mastigando pedaços de carne humana. Carne do Bispo Sardinha, aquele devorado pelos índios em 1556. Mas o escritor embasa as 732 páginas de seu livro em sólidas pesquisas.

O filme de Guilherme Fontes parte dos delírios oriundos da grave lesão neurológica, que deixou o “magnata da mídia brasileira” tetraplégico, para compor – com o artifício de uma programa de TV de moldes chacrinianos, uma colorida chanchada tropicalista (e antropofágica). Escorado na liberdade narrativa, o filme funde personagens (a ponto de transformar dois inimigos figadais como o judeu-bessarabiano Samuel Wainer e o carioca Carlos Lacerda num inusitado Carlos Rosemberg), destrói a relação espaço-tempo e simplifica a complexa personalidade de Chateaubriand. O filho de família rica, que estudou em bons colégios e dispôs de muita leitura e estudo de idiomas, a ponto de tornar-se jornalista ainda adolescente (aos 15 anos) é mostrado como um celerado botocudo, priápico e desbocado full time.

Se Fernando Morais partiu de delírio ficcional para construir um documentário, Guilherme Fontes partiu do ficcional para o delírio pouco nuançado. Mesmo assim construiu um filme que, em alguns momentos, encontra ótimas soluções narrativas.

Homenagens

O Fest Aruanda prestará homenagem a três paraibanos: o compositor e trilheiro Geraldo Vandré, o cineasta Torquato Joel, e – in memoriam – o documentarista, fotógrafo e escritor Walfredo Rodriguez (1894-1974). Troféus Aruanda serão entregues também aos mineiros Lima Duarte (nascido em Sacramento-1930) e Fernando Morais (Mariana, 1946).

A família de Walfredo Rodriguez receberá o Troféu Aruanda em nome do documentarista que Vladimir Carvalho definiu como “o Humberto Mauro do Nordeste”. Autor de cinejornais e de um filme de longa-metragem (“Sob o Sol Nordestino”/1924-1928), Walfredo legou, ainda, a seus conterrâneos, dois livros de grande importância histórico-afetiva: “Roteiro Sentimental de uma Cidade” e “ História do Teatro Paraibano”. Os pesquisadores Wills Leal (nos dois volumes do livro-álbum “Cinema na Paraíba”) e Alex Santos (“Walfredo Rodriguez e a Cultura Paraibana”) estudaram a trajetória do pioneiro do audiovisual nordestino, que viveu seu auge ainda na era muda. Lúcio Vilar, criador e coordenador do Fest Aruanda, defendeu tese de doutorado na USP, tendo Walfredo como objeto de estudo.

O pessoense Geraldo Vandré, que em setembro último completou 80 anos, recebe o seu Troféu Aruanda pelo imenso valor de sua criação musical e, em especial, pela arrebatadora trilha composta para “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Os espectadores do festival assistirão a um documentário que o titã Charles Gavin e o Canal Brasil dedicaram a uma das mais importantes ações de Vandré: o estímulo à criação de um dos discos mais belos já criados neste país (“Quarteto Novo”/1967).

O roteiro de “O Som do Vinil – Quarteto Novo”, escrito por Tárik de Souza, mostra que o artista paraibano foi o mentor, mecenas e colaborador do grupo que reuniu os craques Hermeto Paschoal, Theo de Barros, Airto Moreira e Heraldo do Monte para acompanhá-lo em shows e pesquisar novas sonoridades brasileiras. Em 1968, acompanharam Vandré no disco “Canto Geral”.

Torquato Joel, nascido em Souza, formou-se em Comunicação na UFPB e frequentou, em Paris, o Ateliê de Realização Cinematográfica – Varennes. De volta ao Brasil, realizou diversos vídeos e curtas-metragens. Os mais conhecidos são “Imagens do Declínio – ou Beba Coca, Babe Cola”, “O Verme na Alma” (1998), “Passadouro” (1999) e “Transubstancial” (2003), este, sobre o universo poético de Augusto dos Anjos, eleito “o paraibano mais importante do século XX”. Hoje, além de seguir fiel ao formato curto, Torquato tem corrido municípios, onde ministra importantes oficinas de criação cinematográfica.

O homenageado Lima Duarte chega aos 85 anos em plena atividade, cheio de gás. E com invejável folha de serviços prestados ao cinema e à TV brasileiros. De 1950, ano da implantação da TV Tupi no Brasil, até hoje, Lima fez de tudo: telenovelas (como os sucessos “Roque Santeiro” e “Pecado Capital”), programas musicais (“Som Brasil”) e séries (“O Bem Amado”). No cinema, brilhou em “Sargento Getúlio”, um dos trabalhos mais notáveis (e premiados) de sua carreira. Atuou também em filmes dos lusitanos Manoel de Oliveira (“Palavra e Utopia”), José Fonseca e Costa (“Kilas, o Mau da Fita”) e Paulo Rocha (“Rio do Ouro”), e dos brasileiros Joaquim Pedro de Andrade (“Guerra Conjugal”), Anselmo Duarte (“O Crime do Zé Bigorna”), Maurice Capovilla (“O Jogo da Vida”), Walter Lima Jr. (“A Ostra e o Vento”), Ugo Giorgetti (“Boleiros”), Guel Arraes (“O Auto da Compadecida”) e Andrucha Waddington (“Eu, Tu, Eles”), entre outros.

Fernando Morais vive momentos de dor e alegria neste exato momento. Afinal, sua cidade natal, plantada no núcleo de sítios históricos do barroco mineiro, foi abalada por um dos maiores acidentes ecológicos de nossa história (o vazamento de resíduos da mineradora Samarco no Rio Doce). Por outro lado, ele vê chegar aos cinemas a recriação cinematográfica de seu livro mais ambicioso (“Chatô, o Rei do Brasil”). Antes, dois de seus outros livros haviam chegado aos cinema: “Olga” (Jaime Monjardim) e “Corações Sujos” (Vicente Amorim).

 

Por Maria do Rosário Caetano

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