Espírito da Boca

Em sua estreia em festivais, “Lembranças de Mayo” (2015) recebeu o prêmio de melhor curta nacional no VIII Janela Internacional de Cinema do Recife. O filme mineiro, dirigido por Flávio C. Von Sperling, é um tanto peculiar na filmografia brasileira recente. Com 28 minutos de duração, “Lembranças de Mayo” é uma homenagem ao cinema produzido na Boca do Lixo, em São Paulo. O filme da El Reno Fitas, que ainda passou no A Vingança dos Filmes B – Parte V, em Porto Alegre, acompanha a personagem Zilda (Nicole Puzzi), uma mulher de quase sessenta anos, que começa a namorar um músico mineiro trinta anos mais jovem (Samuel Marotta). Juntos, vão a Belo Horizonte, onde o rapaz mora.

“Sempre achei a Boca encantadora. Vários de meus cineastas favoritos (Garrett, Ody, Carcaça, Cláudio Cunha, Carlão, Mojica etc.) fizeram cinema na Boca e me ensinaram muito. São influências em tudo que faço no cinema. Revisito, assídua e exaustivamente, diversos filmes que me tocam, me inspiram. Várias de nossas maiores atrizes também passaram pela Boca. São rostos, corpos, presenças que não saem de mim (Helena Ramos, Nicole Puzzi, Zilda Mayo, Aldine Müller, Sandra Bréa, Noelle Pine, Rossana Ghessa etc.). O ‘Lembranças de Mayo’ é, de certa forma, uma maneira de escancarar isso, fazer uma homenagem explícita mesmo. É uma declaração de amor ao cinema da Boca e às pessoas que o fizeram”, explica Sperling, que antes dirigiu o documental “O que Teria Acontecido a Sady Baby? (2012), com Leo Pyrata, e o experimental “Double-Crossed” (2013).

Feito com quase R$ 90 mil, ao longo de cinco dias, em novembro de 2014, “Lembranças de Mayo” mimetiza nos mínimos detalhes uma possível estética da Boca setentista, seja filmando em película, na bitola 16mm (em uma proporção 2:1, como na Boca), na janela 1.37:1, seja emulando um letreiro de créditos no início, com cartelas coloridas. Sperling também fez questão de contar com experientes nomes da Boca do Lixo no elenco. O ‘Mayo’ do título, inclusive, é uma referência à atriz Zilda Mayo, que não topou fazer o filme. Para tal, convocou Nicole Puzzi, musa de filmes de Walter Hugo Khouri, entre outros, para fazer Zilda. O filme também conta com Cláudio Cunha, diretor, produtor e ator da Boca, que faleceu em abril de 2015, aos 68 anos, como pai do namorado de Zilda, que fica encantadíssimo por ela.

O enredo também traz similaridades com os filmes do polo paulista, com uma trama amorosa livre, regada a sexo e nudez. Sperling, porém, avança o universo da Boca, ao colocar como musa e símbolo sexual uma mulher de quase 60 anos, livre, desimpedida, sexual, que namora homens mais novos. “A Boca sempre foi machista. Muito. Tanto dentro dos filmes quanto fora. Criou-se uma espécie de star system com as atrizes, as verdadeiras estrelas, que garantiam boa parte do sucesso desses filmes. Contudo, enquanto vários produtores e diretores se enriqueciam, elas eram de certa forma deixadas de lado nesse sentido. Isso para não falar do assédio constante que essas mulheres sofriam (e sofrem ainda). Tentamos inverter isso de certa forma no roteiro. Queríamos uma personagem mulher maior que os homens, dona de si. No filme, forma-se uma espécie de ciranda de otários em torno de Zilda, a protagonista, que, após um ponto de virada engatilhado por uma aparição (Flávia Falcão cantando Lydia Mendoza), decide por fim a isso”, conclui.

 

Por Gabriel Carneiro

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