Conteúdo independente para TV se consolida como indústria

No piso térreo da casa, pedreiros retocam a pintura e fazem os últimos ajustes da reforma. Logo acima, Malu Viana e Carolina Kotscho acertam, animadas, detalhes da decoração – mesas mudam de lugar, móveis vintage são incorporados e o espaço se abre para a multiplicação dos profissionais que passaram a tomar conta dali.

Até pouco tempo atrás, o prédio, localizado na região central de São Paulo, era conhecido como a sede da Polo de Imagem (“Expresso Brasil”). Agora, é o quartel general da Loma Filmes, resultado da fusão da produtora de Malu com a Dama Filmes (“Não Pare na Pista”), de Carolina. “Chegamos a uma fase em que nosso tamanho ficou um pouco estagnado e, para crescer, era preciso juntar forças”, justifica Malu.

Esse movimento de expansão tem tudo a ver com o atual momento da produção independente no Brasil após a promulgação da Lei 12.485/2011, que estabeleceu cotas de veiculação de conteúdo nacional na TV paga do país e multiplicou de forma exponencial a demanda por produtos capazes de cumprir os requisitos exigidos.

A Loma não é a única testemunha disso. No ano passado, a paulistana Glaz (“Historietas Assombradas”) também se fundiu à carioca Copa Studio (“O Irmão do Jorel”) e a Ioiô Filmes (“Tudo o que É Sólido Pode Derreter”) ganhou novos sócios e passou a se chamar Intro Pictures. “Estamos crescendo porque precisamos crescer”, atesta a diretora-executiva da produtora renomeada, Simoni de Mendonça.

Malu Viana: "Chegamos a uma fase em que nosso tamanho ficou um pouco estagnado e, para crescer, era preciso juntar forças" © Flora Pimentel

Produtoras contaram com investimentos do mercado financeiro

A frase está longe de ser mera retórica. Tanto a Glaz quanto a Intro tiveram seus negócios turbinados pela injeção de recursos externos. A primeira foi contemplada pelo Funcine Investimage 1, enquanto a segunda recebeu aporte direto do empresário Guilherme Campos. “O mercado financeiro está de olho em nós”, diz Simoni. “Audiovisual é investimento puro, é risco”, completa Miriam Jacob, coordenadora de projetos da casa.

Segundo Mayra Lucas, CEO da Glaz, o investimento foi a forma encontrada para acompanhar o mercado. “Nosso forte é cinema e fomos atrás de uma reformulação da companhia justamente para atender à TV paga”, diz ela. “Vimos que um mercado muito grande havia sido aberto e que a gente não tinha estrutura para atendê-lo. Já trabalhávamos com o Copa Studio, mas precisávamos crescer nosso número de produção. Em vez de montar uma equipe nova, fizemos a fusão”, explica a executiva. Essa jogada fez com que o quadro de funcionários saltasse de 12 para 110, entre 2014 e 2015, e deu fôlego para a empresa desenvolver diversas séries de TV. Atualmente, está em curso a produção da animação “O Baú do Lú” (TV Brasil), com direção de Victor Hugo Borges, e a segunda temporada da série de ficção “Vida de Estagiário” (Turner), dirigida por Vitor Brandt Figueiredo, além de novas temporadas de seus principais sucessos, as animações “Historietas Assombradas” e “O Irmão do Jorel”.

Carolina Kotscho: "A fusão significou aliar uma carteira poderosa a uma máquina que funciona" © Aline Arruda

Conteúdo como prioridade

Para a Intro, o aporte exigiu uma contrapartida. “Não adiantava crescer só do lado financeiro. Precisávamos crescer criativamente”, diz Simoni, referindo-se à associação da empresa com o uruguaio Lucas Vivo, da argentina Navajo Films. “Ele nos mostrou que o Brasil tem muitas histórias para contar, e nossa parceria já está rendendo muitos frutos. Estamos encontrando personagens interessantíssimos”, diz Miriam. É o caso do casal de investigadores de eventos sobrenaturais protagonista de “Paranormal”, que está com piloto pronto em busca parceiro de exibição. A Intro trabalha ainda na produção da série de ficção “A Lei” (Turner), com direção de Adrián Caetano, e da série documental “Brasil Folclore” (CINEBRASiLTV), a ser dirigida por Betão Aguiar – ambas com previsão de estreia para 2016.

No caso da Loma, o potencial criativo acabou turbinado pelo caráter distinto de cada uma das produtoras que deu origem a ela. “A Polo funcionava quase como uma butique de cinema, enquanto a Dama trazia uma experiência de comunicação maior”, afirma Malu. “É uma equação inteligente de negócio, pois temos experiências complementares. A Polo já tinha uma consistência e segurança grandes. Eu ainda não tinha essa máquina, mas tinha contatos. A fusão significou aliar uma carteira poderosa a uma máquina que funciona”, completa Carolina, que no ano passado recebeu um investimento de R$ 4 milhões do BNDES. Atualmente, a Loma trabalha em 20 projetos – metade deles já viabilizados e quatro com exibição prevista para este ano: as séries “Conto que Vejo” (Canal Brasil) e “Expresso Brasil II” (CINEBRASiLTV), com direção de Hilton Lacerda, “Misch Masch (Brasil Judaico)” (Canal Curta!), com direção de Pedro Gorski, Lila Schnaider e Tatiana Toffoli, e “Designers do Brasil” (Canal Curta!), dirigido por Helder Aragão.

Simoni de Mendonça: "O mercado financeiro está de olho em nós, precisamos crescer não só financeiramente, mas crescer criativamente"

Regularidade do FSA permitiu planejamento antes inexistente 

Segundo Malu, esse cenário favorável para as produtoras independentes aconteceu apenas porque a implantação da chamada lei da TV paga foi acompanhada pelo estabelecimento e consolidação de políticas estruturantes por parte do governo, com abertura de diferentes formas de financiamento, como o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro (PRODAV), que ofertou linhas voltadas às mais diversas frentes da cadeira produtiva de televisão, da criação à programação e ao desenvolvimento de projetos.

Tais ações, em especial as atreladas ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), tomaram escala profissional nos últimos três anos e respondem hoje a mais de 50% dos recursos utilizados pelas produtoras entrevistadas nesta reportagem. “Agora, já há padrões de regularidade. Você sabe que vai dar entrada no projeto em determinado momento e que vai receber o dinheiro mais ou menos em oito meses. Tenho projeto no Fundo que comecei entre 2009 e 2010 e estamos filmando agora. Ao mesmo tempo, já estou filmando um projeto com o qual entrei no final de 2014”, afirma Nuno Godolphim, produtor-executivo da Ocean Films, que deve estrear em 2016 as séries “Enredo de Bamba” (Canal Brasil), dirigida por Bernardo Palmeiro, e “Terra, Água e Sangue” (CINEBRASiLTV), assinada por Tiago Carvalho.

“Historietas Assombradas”, também uma produção da Glaz, exibida no Cartoon Network

Quem reforça essa constatação é Belisario Franca, diretor criativo da Giros, que se prepara para estrear em 2016 as séries “Imortais da Academia” (Curta!), com direção dele mesmo, e “Rua para Toda Gula” (Discovery), conduzida por Renato Lima. “O FSA teve um início bastante tumultuado, mas a coisa tem melhorado ano a ano e já engrenou para algo mais profissional.”

Para Mônica Monteiro, CEO da Cine Group, o cenário atual marca uma transição do modo de produção artesanal ao industrial. “Nos últimos anos, a aproximação com as divisões brasileiras de produção dos canais estrangeiros está trazendo benefício, porque essa interlocução nos ajuda a ter uma linguagem internacional. Estamos saindo do olhar autoral, caseiro, para um olhar de indústria. Hoje, nossas produções são desenhadas com um plano de negócios com um percurso que envolve TV paga, TV aberta e novos serviços de vídeo sob demanda”, explica ela, que extrai 80% do faturamento da produtora de programas concebidos para a televisão, como “Poesia com Maria Bethânia” (Arte 1), com direção da própria Mônica Monteiro, “Deu Match!” (MTV), dirigida por Humberto Giancristófaro, e “História Não Escrita”, ainda sem diretor definido, que está sendo desenvolvido para a Band e a Turner – todos com previsão de estreia para este ano.

Crescimento atinge outras regiões do Brasil

Se os mecanismos de financiamento coordenados pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) são importantes para mercados consolidados, como Rio de Janeiro e São Paulo, eles têm um impacto ainda maior para produtoras localizadas fora do Sudeste, como é o caso da baiana Tem Dendê. Segundo a diretora de conteúdo da produtora, Vânia Lima, o cenário agora possibilita sustentabilidade. “Já prestávamos serviços para a televisão antes da lei, mas tudo era financiado por patrocinadores diretores e o mercado não conseguia abraçar nosso conteúdo com a prática de publicidade da TV aberta. Nossas produções precisavam sofrer muito em seus orçamentos, muitas vezes com risco de saída do patrocinador. Éramos muito reféns daquilo que a TV aberta disponibilizava, e conseguimos começar a focar em uma forma diferente de fazer TV”, diz ela, responsável pela direção-geral do principal case de sucesso da produtora, a série “Bahia de Todos os Cantos”. Licenciada para o CINEBRASiLTV, a quinta temporada já está em produção.

A criação de mecanismos de financiamento público regionais também vem estimulando a formação de coproduções entre empresas de diferentes regiões de forma a conferir mais robustez ao desenvolvimento das ideias. “Essas são parcerias que beneficiam e geram produtos melhores, com valor de produção maior”, acrescenta Carolina Kotscho.

Essa nova realidade criou um caldeirão de possibilidades de financiamento. “Usamos desde FSA a dinheiro livre e também de investidores que acreditam em projetos específicos. Essa talvez seja uma das maiores riquezas do momento. Não é só PRODAV e artigo 3º, é tudo isso e mais um pouco para montar nosso buquê de investimento”, diz Belisario Franca.

Uma fatia desse buquê que ainda tem muito a crescer é a do “branded content”, segundo Miriam Jacob. “Talvez o maior desafio seja demonstrar para as marcas que existe um novo campo para que elas sejam trabalhadas e que isso agrega valor”, pontua.

Mayra Lucas: "Tinha gente que me falava que a lei não ia acontecer e agora está atrasado. Já os canais que começaram a cumprir a cota descobriram que o produto nacional de fato dá mais audiência"

A conquista da parceria entre produtora e canais

As linhas de financiamento da Ancine atrelam a concessão de recursos a investimento próprio dos canais onde os programas serão exibidos, forçando o efetivo escoamento e a circulação dos programas. Uma das consequências dessa medida foi a abertura de diálogo entre os canais e as produtoras, algo pouco azeitado até então. “Tinha gente que me falava que a lei não ia acontecer e agora está atrasado. Já os canais que começaram a cumprir a cota descobriram que o produto nacional de fato dá mais audiência”, afirma Mayra Lucas – suas animações “Historietas Assombradas” e “O Irmão do Jorel” foram as mais vistas entre o público de 4 a 11 anos do canal Cartoon Network, nos anos de 2013 e 2014, respectivamente.

“É como uma brincadeira de gato e rato. Não basta ter uma boa ideia, é preciso sentar, assistir ao canal, ir aos eventos e ouvir o que as pessoas estão querendo. Se você não estiver atento aos caminhos para onde o canal está indo, não consegue apresentar um projeto com um formato que ele queira para o ano que vem, por exemplo. Isso é um grande aprendizado”, explica Nuno Godolphim.

Vânia Lima ressalta a possibilidade de intercâmbio com os canais. “Eles são seu primeiro parceiro e, às vezes, podem dar dicas. O produtor independente precisa ter um pouco de humildade para fazer essa troca. As propostas não vão deixar de ser originais, independentes e autorais se você abrir para o diálogo. É uma necessidade para que você possa ter relações maduras e sustentáveis”, explica ela.

Com um mercado em franca expansão e cada vez mais competitivo, ganha quem procurar diferenciais. “A forma de fazer audiovisual barateou muito. Quando começamos, há 20 anos, gastavam-se fortunas. Hoje, são trocados em relação àquilo. A criatividade foi o que nos restou, e temos algo que Rio-SP não têm: a questão regional”, aponta Lula Queiroz, diretor da pernambucana Luni, que este ano prepara, entre outras, a série documental “Arquibancadas” (CINEBRASiLTV).

Já a dramaturgia é a principal aposta da Intro. “Queremos ser reconhecidos por isso, pois ela faz com que mais pessoas olhem para a gente”, diz Simoni. Esse também é um caminho buscado pela Cine Group. “O brasileiro tem como tradição assistir novela, gosta de ver boas histórias e bons atores. Com foco nisso, já estamos trabalhando o núcleo de ficção há mais de seis anos”, diz Mônica Monteiro.

O próximo passo das produtoras independentes é maximizar o aproveitamento de suas crias, em especial, em um ainda desconhecido mercado de vídeo sob demanda (VOD). “Ainda estamos patinando nessa questão, mas vamos chegar lá. Finalmente, se está fazendo justiça ao produtor, porque ele passou a ser proprietário do bem. Temos presença nas discussões e procuramos dar nova distribuição em mais janelas. Essa talvez seja uma das consequências mais interessantes da nova legislação a longo prazo”, conclui Belisario Franca.

Belisario Franca: "Usamos desde FSA a dinheiro livre e também de investidores que acreditam em projetos específicos, essa talvez seja uma das maiores riquezas do momento"

 

DADOS DEMOSTRAM CRESCIMENTO DO SETOR

O crescimento do número de produtoras independentes no Brasil atesta a explosão desse mercado após a Lei 12.485. Em 2011, quando foi promulgada, eram 175. Ao fim de 2015, 603, de acordo com a Associação Brasileira de Produtores Independentes de Televisão (ABPITV).

Segundo o diretor-executivo da entidade, Mauro Garcia, os números em torno desse universo ainda não são tão bem estruturados quanto os do cinema, mas dão alguns indícios para um diagnóstico do setor. Para além da nova legislação, as produtoras encontraram terreno fértil na própria expansão da TV paga no país, cujo número de assinantes cresceu de 12,7 milhões, em 2011, para 19,39 milhões, em 2015, o que representa uma presença em 29,22% dos lares do país.

“Essa aumento de base trouxe um telespectador diferente, com hábitos de consumo audiovisual calcados na TV aberta. A presença desse público promoveu uma grande mudança nos canais e o conteúdo nacional de horário nobre passou a responder pelas maiores audiências deles, tanto que, hoje, muitos vão além das cotas”, explica o executivo.

Mauro Garcia: "Precisamos de algo que atue em conjunto com o FSA para que a gente não tenha nenhum retrocesso em um ciclo que está dando resultados para todos"

Isso se reflete, mais uma vez, nos números. Entre 2011 e 2014, a quantidade de séries inéditas pulou de 73 para 506, segundo dados da Ancine. O licenciamento de obras nacionais também passou de 761 para 2.592 no mesmo período.

Para Garcia, o diferencial da atual política pública para o setor está em conjugar fomento à produção com distribuição ao obrigar casamentos entre produtoras e canais de forma a viabilizar projetos e permitir o pleno funcionamento de todos os elos da cadeia produtiva para TV. “Até então, cada um se preocupava com um ponto específico. Hoje, já há um conjunto de ações. Houve inteligência para que tudo acontecesse ao mesmo tempo”, afirma.

Ainda segundo ele, o quadro favorável é o que justifica o fato de o setor não ter sentido efeitos da crise econômica do país em 2015. “O audiovisual ainda não foi contaminado. A base de assinantes teve uma pequena diminuição no fim do ano, mas, ao mesmo tempo, a gente teve aumento de consumo em outras telas, como Netflix e Youtube, o que traz um pouco de equilíbrio.”

O próximo passo para a consolidação desse mercado é a atração de investidores privados, tema de dois painéis que serão promovidos pela ABPITV na edição deste ano do RioContentMarket. Segundo o executivo, a maior dificuldade é convencer que, diferentemente do cinema e seus números de bilheteria, este é um retorno a longo prazo. “O que falta no mercado, em geral, é a entrada de fundos privados de investimento. Não existe um equivalente ao Fundo Setorial do Audiovisual no mercado. Vamos falar sobre algumas experiências internacionais. Precisamos de algo que atue em conjunto com o FSA para que a gente não tenha nenhum retrocesso em um ciclo que está dando resultados para todos”, conclui.

 

Por Amanda Queirós

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