O marketing da malandragem

Dizem que o Brasil é um país sem memória. Pode ser verdade, pode ser apenas mais um daqueles mantras típicos da nossa suposta “viralatice” que, recitado à exaustão, torna-se uma verdade imaginária. Não é o caso de discutir isso agora, mas se for verídica a afirmação de que somos desmemoriados, pelo menos, pode-se afirmar que o cinema não tem culpa nenhuma nisso. Os documentaristas brasileiros estão, há anos, cumprindo seu papel de levantar, contar e recontar histórias significativas do nosso passado, tanto na área política como na cultural. Principalmente, diga-se, na musical.

Um dos mais recentes documentários a contribuir para este verdadeiro painel histórico-audiovisual que mapeia a nossa música é “Eu Sou Carlos Imperial”, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, a mesma dupla que realizou outro ótimo registro no mesmo setor: “Uma Noite em 67”.

Impossível falar da música popular brasileira dos anos 60 e 70 sem falar de Carlos Imperial. Grande, volumoso e espalhafatoso, Imperial assumiu para si próprio, e vestiu como ninguém na época, a persona do cafajestão. Produtor musical, empresário, compositor, cineasta, ator e exímio descobridor (e “fabricador”) de sucessos e talentos, o capixaba Carlos Eduardo da Corte Imperial foi um dos maiores marqueteiros da MPB, num momento em que a palavra marketing sequer existia no Brasil.

Para fazer sucesso, valia tudo para ele, desde mentir e caluniar, até roubar direitos autorais dos próprios talentos que empresariava. O grande mérito do filme está em não esconder, nem maquiar, nenhuma das histórias sórdidas de seu documentado. Tudo está lá. Os menos jovens, certamente, se lembrarão, por exemplo, do escândalo que perseguiu o ator Mário Gomes, acusado na época de ter tido um, digamos assim, “relacionamento íntimo” com uma cenoura. Não sabia? Foi uma calúnia do desafeto Imperial e quase terminou com a carreira do então galã. Ou então do choro de Carlos Imperial diante das câmeras, ao revelar durante uma entrevista as torturas sofridas nos porões da ditadura… O que nunca na realidade aconteceu, segundo seu biógrafo. Digna de nota também a estratégia do empresário de registrar, em seu próprio nome, a canção de domínio público “Meu Limão, meu Limoeiro”. E faturar alto em cima desta mentira.

O documentário faz uma acertada opção pela simplicidade e pela objetividade narrativa, abrindo mão de eventuais arroubos estilísticos e/ou criativos que poderiam desviar a atenção do que realmente importa: a ímpar figura do seu objeto. E nem seria necessário recorrer a maneirismos, mesmo porque toda a estrutura do filme está fortemente fundamentada num farto arsenal de imagens de arquivo e depoimentos atuais de muitos dos astros revelados por Imperial. O cantor e compositor Eduardo Araújo, por exemplo, ao mesmo tempo em que acusa o empresário de lhe ter “desviado” direitos autorais, também sinaliza seu raro faro para o sucesso, ao afirmar que insistiu ao máximo para não gravar a música “O Bom”, que julgava ruim, e que acabou se transformando em seu maior sucesso. Prova das características multifacetas de Imperial, que o filme sabe explorar com precisão e bom humor.

Além de fazer Araújo explodir nas paradas de sucesso, cantando preciosidades como “botinha sem meia/e só na areia eu sei trabalhar”, Carlos Imperial também capitaneou as carreiras de Roberto e Erasmo Carlos, Elis Regina, Wilson Simonal, Tim Maia, Clara Nunes e muitos, muitos outros. Quem foi jovem nos anos 60 certamente cantarolou – e deve se lembrar até hoje – de vários versos de “Pode Vir Quente que Eu Estou Fervendo”, “Mamãe Passou Açúcar em Mim” ou “Nem Vem que Não Tem”, grandes sucessos nas vozes de grandes cantores populares, mas todas saídas da incansável criatividade de Imperial. Não é pouca coisa.

O tom do filme, geralmente sarcástico e divertido, só se torna mais sombrio nos depoimentos dos filhos Marco Antonio e Maria Luísa, figuras que mostram, com certa dose de dramaticidade, que não devia ser nada fácil ter Carlos Imperial como pai.

Entre verdades, mentiras, denúncias, invenções e lendas urbanas, destaque para o hilariante momento que mostra o dia em que os Beatles gravaram “Asa Branca”… Só que não. Coisas que só Carlos Imperial poderia fazer.

Assista ao trailer do filme aqui.

 

Eu Sou Carlos Imperial (Brasil, 90 min., 2015)
Direção: Renato Terra e Ricardo Calil
Distribuição: Bretz Filmes
Estreia: 17 de março

 

Por Celso Sabadin

2 thoughts on “O marketing da malandragem

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.