Cultura, Estado e governos

Sem cultura não há sociedade. O ser humano é natureza e cultura, geração espontânea e geração por aprendizado e fazimento. Em sua definição abrangente, cultura é tudo o que o ser humano faz e pensa. A relação do Estado com a grandeza e complexidade da cultura sempre foi difícil, às vezes inconsistente, às vezes consistente demais. Uma relação mais conflituosa do que complementar, pelo menos desde o surgimento dos Estados nacionais modernos, lá pelo século XIII. De qualquer maneira, cultura é tema de Estado, não de governos.

No Brasil, uma relação institucional entre Estado e cultura só aparece em 1953, mais de um século depois da independência. A aproximação começou em 1930 com Getúlio Vargas pelo viés da educação, com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública e do Instituto Nacional de Cinema Educativo. Em 1953, no segundo governo Vargas, surge o Ministério da Educação e Cultura, o MEC. Em 1985, no governo Sarney, é criado o Ministério da Cultura, o MinC. Em 2003, no governo Lula, o MinC é estruturado em seu formato atual, sua área de atuação definida (fomento e incentivo a ações culturais nas vertentes simbólica, social e econômica) e o primeiro projeto cultural nacional de longo alcance posto em prática.

Vulnerabilidade

Por princípios humanistas e de identificação nacional, recursos públicos para saúde, educação e cultura não deveriam sofrer cortes circunstanciais, estar na lista dos constantes contingenciamentos orçamentários. Mas estão, no Brasil e em muitos países. Neste ano de 2016, o governo destinou ao MinC R$ 2,3 bilhões, um bilhão a menos do que no ano passado. Recentemente, outro contingenciamento cortou cerca de 27% do que tinha sobrado. A razão é a crise econômica, irmã gêmea da crise política.

O que acontecerá se a crise política avançar sobre o MinC e suas entidades vinculadas, a Ancine entre elas? Até o momento isso não aconteceu e espero que não aconteça, mas a sociedade tem de ficar de olho nessa possibilidade. Só para lembrar, no governo Collor, que foi crise do início ao fim, o MinC deixou de existir, foi substituído por uma secretaria ligada ao gabinete presidencial, e a Embrafilme foi fechada.

A crise política brasileira é tão forte, serpenteante e escorregadia, que não sei como o País estará quando estes comentários forem publicados, daqui a alguns dias. A espada de Dâmocles que está sobre minha cabeça neste momento é a tentativa de um golpe parlamentar-midiático contra uma presidente eleita com mais de 54 milhões de votos. Sobre a minha cabeça e a de milhões de brasileiros. E a luta contra essa aberração é travada pelos movimentos sociais, operários, camponeses, estudantes, intelectuais, artistas, enfim, por mulheres e homens de boa vontade que defendem a democracia. Como estará a desordem em uma semana? Sabendo ou não, nosso dever como cidadãos e trabalhadores da cultura, do audiovisual, é não permitir que nossa atividade seja arrastada na enxurrada.

O audiovisual está na ponta do processo cultural que move a consciência e o imaginário das populações. Sua linguagem ao mesmo tempo aguda e envolvente, penetrante e abrangente, tem um poder psicológico que nenhum artista pré-cinema imaginou que um dia podia acontecer. Um poder de ingerência psicossocial que qualificou um novo tipo de humanidade durante o século passado e que, com as tecnologias da atualidade e as que estão por vir, será ainda mais mutacional e decisivo no século que estamos vivendo. Talvez um novo Século das Luzes, talvez uma nova Idade das Trevas, depende de cada um de nós.

Atividade em crescimento

A organização institucional do audiovisual brasileiro é uma das melhores do mundo, seguramente a mais avançada e frutífera da América Latina, operacionalizada pela Ancine e respaldada pelo MinC. A maioria dos segmentos da atividade já estão contemplados em seus aspectos de produção e difusão, como cinema, vídeo, televisão. A Lei 12.485, da TV por assinatura, foi um passo de gigante, dobrou a produção de conteúdos brasileiros. Outros aspectos, como videogame, produtos multimídia e expansão do aluguel digital de conteúdos (VOD) estão na pauta neste momento, acompanhando a evolução criativa e negocial incessante do mercado audiovisual.

Recentemente, a chefe do Departamento de Cultura do BNDES, Luciane Gorgulho, afirmou que o audiovisual é um dos raros setores da economia que se conserva imune à crise econômica, que “rema contra a crise”. A atividade representa cerca de 0,54% do PIB, é maior do que as indústrias farmacêutica e têxtil, tem crescimento mais acelerado do que o conjunto da economia brasileira. Uma posição de importância na economia como nunca teve, alcançada pela execução do planejamento cultural de longo alcance ao qual me referi.

Por outro lado, esse avanço incomoda aos grandes países produtores/exportadores e aos consórcios multinacionais que dominam quase 80% do consumo mundial de produtos e insumos audiovisuais. O Brasil é o décimo mercado nacional audiovisual do planeta e está crescendo acima da média global. E, de repente, assistimos à tentativa das operadoras de telefonia, empresas transnacionais, de não pagar a Condecine e atacar esse imposto, que fomenta a realização e distribuição de nossos conteúdos audiovisuais, aproveitando-se da fragilidade do governo federal para fazer seu escândalo. As Teles escolheram um momento em que cometer o atentado era politicamente possível.

Alicerce

Temos de estar atentos e fortes. Um olho no peixe e outro no gato, como diria meu avô. Definitivamente, a cultura tem de ser uma questão de Estado, não de governos e, portanto, deve ser mantida acima ou além das tramoias dos políticos profissionais e da corrupção epidêmica que os acompanha. A superação de impactos sociais e econômicos danosos à soberania da nação e à condição cidadã de seus habitantes é a qualidade da cultura do povo que enfrenta situações de desordem. Sabemos (quem não sabe deve refletir por que não sabe) que nenhum planejamento social ou econômico é estável e duradouro se não estiver alimentado pelo oxigênio cultural, pelo respaldo de valores culturais.

 

Por Orlando Senna, escritor e cineasta

One thought on “Cultura, Estado e governos

  • 2 de junho de 2016 em 05:53
    Permalink

    POR UM CINEMA BRASILEIRO LIVRE DA LEI ROUANET! FEITO SEM O DINHEIRO DO CONTRIBUINTE, QUE SEJA AUTO SUSTENTÁVEL E FINANCIADO ATRAVÉS DA INICIATIVA PRIVADA!

    Resposta

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