“Aquarius”: o choque entre preservação e destruição da memória

Novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, Aquarius desponta sob o signo da polêmica. Exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes deste ano, o filme ganhou amplo destaque na mídia internacional, pois, pouco antes, Kleber e sua equipe realizaram protesto nas escadarias que levam ao Palácio dos Festivais: eles levantaram cartazes contra o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Num dos momentos de maior tensão política em nossa história recente, não se pode negar que a posição de Kleber Mendonça teve enorme ressonância; não se pode negar, igualmente, que para o bem e o mal Aquarius ganhou uma publicidade que poucos filmes tiveram em nossa cinematografia. Projetado sob o signo da polêmica, creio que só baixada a poeira se poderá ajuizá-lo devidamente com isenção das paixões.

Com isso, tenho em vista que uma obra assim se beneficia das circunstâncias e condicionantes do momento, tanto quanto do talento de seu criador para captar os sinais do tempo. Se há uma virtude inegável em Kleber Mendonça, é sua enorme capacidade para intuir o que se passa e expor sua visão de mundo e obra em condições oportunas. Nesse sentido, ele confirma sua posição de mais talentoso cineasta brasileiro das últimas décadas.

Resultado de circunstâncias favoráveis e do talento do diretor para entender as engrenagens da máquina publicitária, Aquarius põe questões e exige que se o reflita como obra de arte sob um intenso fogo cruzado. Dito isso, há de se reconhecer que o filme revela a assinatura de Kleber Mendonça; uma assinatura caligrafada desde seus primeiros experimentos com o curta Enjaulado (1997).

De fato, Aquarius é um filme kleberiano; portanto, em que se reconhecem plenamente marcas de seu estilo. Mais que isso, é uma espécie de suma do que Kleber Mendonça fez. O que faz pensar numa obra madura, no clímax criativo do cineasta até o momento. Sendo assim, elogiar Aquarius implica por em relevo sua posição não só na cinematografia nacional, mas em âmbito internacional. Aqui, o problema da métrica frente às paixões de momento: só com o tempo se poderá dizer o quanto Aquarius firmar-se-á como obra magna.

Posto isso, trata-se de um filme indiscutivelmente afinado ao momento. Sua trama, centrada na figura de uma mulher que, em seu apartamento na praia de Boa Viagem, Recife, resiste à especulação imobiliária. A partir desse fio narrativo, muito das contradições de um país sem sentido de preservação do espaço urbano; nesse fio narrativo, muito do quanto os ares dos novos tempos se desconectam do passado.

Kleber Mendonça, como já havia exibido em O Som ao Redor (2013), é de uma sensibilidade ímpar para captar tensões e falsos apaziguamentos no movimento que confronta tradição e modernidade. Sim, Aquarius põe em cena situações que se espraiam por todo Brasil urbanizado: o choque entre o sentido de preservação, como forma de reconhecimento de identidade comum, e o novo pelo novo, como grau zero que apaga a memória do passado.

Suma das questões que acompanham o trajeto de um cineasta que se coloca no centro do debate sobre o país, Aquarius força o questionamento, deixa perguntas a fim de que se não o veja na superfície. A resistência individual, isolada, contra poderosas estruturas de poder carrega o sentido de uma empreitada quixotesca? O movimento da trama, ao mesmo tempo em que celebra a resistência da moradora que se recusa a ceder à especulação imobiliária, fecha-se de forma inconclusa. No desfecho de Aquarius, algo como uma vitória de Pirro: “outra vitória como esta e estarei perdido”.

Isso porque, na situação em que se encontra a moradora do edifício Aquarius, que dá título ao filme, vencer uma batalha tão somente prolonga sua situação. Se não foi a intenção inicial de Kleber Mendonça, Aquarius deixa sinais que indicam que Clara, a moradora obstinada, está desde o início condenada, se debatendo, pois, contra moinhos de vento. Embora, talvez, pareça o contrário, acentuado por um ritmo nostálgico, Aquarius é um filme extremamente pessimista.

Leia matéria sobre o filme publicada na Revista de CINEMA.

Assista ao trailer do filme aqui.

 

Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado)

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