O cinema contra a barbárie

Desde outubro de 2012, o cineasta gaúcho Cristiano Burlan, atualmente radicado em São Paulo, já lançou seis longas-metragens. Todos os seus filmes até o momento foram feitos sem recursos incentivados, com uma média de R$ 10 mil juntados entre ele e seus parceiros. Até 2017, Burlan promete mais cinco longas. Sua produtividade está diretamente ligada à sua liberdade criativa, trafegando entre ficção e documentário e da ligação que seus filmes têm com sua vida. Quando Burlan foi amplamente reconhecido pelo seu trabalho, já estava no terceiro longa-metragem, o documentário “Mataram meu Irmão” (2013), premiado como melhor filme no É Tudo Verdade, em que investiga a morte de seu irmão e retrata a violência urbana. Os dois longas ficcionais anteriores, “Corações Desertos” (2005) e “Sinfonia de um Homem Só” (2012), estrearam na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, soterrados pelo volume de filmes exibidos no evento. Depois de “Mataram meu Irmão”, o nome de Burlan passou a chamar a atenção, ainda que a quantidade de filmes que lança não permita tantos destaques individuais. O mais recente, “Fome” (2015), foi lançado no Festival de Brasília, de onde saiu com os prêmios de som e especial do júri para Jean-Claude Bernardet.

“Fome” acompanha um morador de rua (Bernardet), que perambula por São Paulo. Uma moça (Ana Carolina Marinho), fazendo um trabalho acadêmico, aproxima-se desse universo. Para compor essa história, o cineasta partiu de sua experiência como imigrante ilegal na Europa e da leitura de “Fome”, de Knut Hamsun, e de “Na Pior em Paris e Londres”, de George Orwell, como construção da atmosfera.

No filme, Bernardet assume parte de sua história como a história de seu personagem, um francês que mora há muito tempo no Brasil e trabalhou como teórico e acadêmico por muitos anos, e que resolveu mudar de vida, reinventar-se. Para fazer isso, ele se expõe a um mundo bastante diverso, a que várias pessoas estão submetidas sem escolha. “Eu não trabalho com a ideia clássica de construção de personagem. Sempre são os atores em situações. Nesse caso, o Jean-Claude em situação de rua. O que me interessava não era ele interpretando a si mesmo ou a um personagem, mas o seu rosto como paisagem, como cartografia da alma, cada marca no seu rosto é um aspecto do pathos humano”, afirma Burlan. Nessa lógica de construção, por exemplo, uma cena que é um embate entre Jean-Claude e o crítico Francis Vogner dos Reis, que confronta o antigo professor, é um dos momentos mais estranhos e divertidos do filme.

Jean-Claude Bernardet, em cena de “Fome”: um olhar fenomenológico do homem que vive a rua

“Fome” é o terceiro longa que Burlan fez com Jean-Claude Bernardet, e o primeiro que ele protagoniza. Sua escolha para o papel vem da crença de Burlan no trabalho que o ator deve desenvolver. “O que me interessa nele é um certo tipo de atuação que acho extremamente sofisticada e moderna, diferente da maioria dos atores que conheço. Ele não tem formação em interpretação e isso liberta ele de todos os maneirismos comuns aos atores. Ele se colocou diante da câmera, não como um ator, mas como um bailarino, um performer”, aponta. O cineasta conheceu Bernardet porque ambos moravam no edifício Copan, no centro de São Paulo. “O Jean-Claude teve contato com dois filmes meus, ‘Sinfonia de um Homem Só’ e o ‘Mataram meu Irmão’. Ele foi muito generoso nas ponderações que fez sobre esses filmes e daí surge nossa amizade. Desde então, fizemos cinco filmes, ‘Amador’, ‘Hamlet’, ‘Fome’, ‘No Vazio da Noite’ e ‘Sob o Sol dos Deuses’, em que estamos em pré-produção. Realizo, paralelamente, um documentário sobre a sua vida e obra, o qual intitulo de ‘Abecedário de JCB’, mas que combinamos que finalizaria apenas depois de sua morte”, conta.

Filmando São Paulo 

“Fome” é a última parte da tetralogia sobre São Paulo, composta por “Sinfonia de um Homem Só’, “Amador” (2014) e “Hamlet” (2014). “A tetralogia se inicia em 2011, com ‘Sinfonia de um Homem Só’. A cinematografia paulista já teve momentos de amor profundo por sua cidade. Eu, como realizador paulista, não de nascimento, mas por opção, me reconheço nessa cidade cinza e brutal. Amo filmar São Paulo e suas contradições. O que agrupa esses filmes é o seu personagem principal, a cidade de São Paulo”, conta Burlan. “Sinfonia” acompanha um homem (Henrique Zanoni) que sai do interior para tentar sua vida em São Paulo. “Amador” é sobre um cineasta (Zanoni) em crise, buscando novos rostos. “Hamlet”, por sua vez, alterna a montagem da peça de Shakespeare com seu processo de criação por um grupo de teatro. “Talvez mais do que solidão, os filmes sejam sobre a solitude, esse estado de reclusão e um profundo desejo pelo silêncio”, complementa.

Para essa tetralogia, Burlan optou por uma fotografia em P&B. “Acredito que essas novas câmeras digitais têm um excesso de cor que saturam a realidade. Como quase nunca tenho recursos para uma pós-produção esmerada, me interessa uma fotografia em preto e branco ou monocromática. E creio que nesse limbo entre o claro e o escuro, onde se proliferam os vermes, reside o que há de mais potente para a dramaturgia, o conflito humano”, aponta.

Processo de filmagem

Burlan não gosta de trabalhar com roteiro. Prefere escaletas e plantas baixas de movimentos e ações. O desenvolvimento emocional dos personagens também está sempre claro em sua cabeça. “Sei muito bem onde quero chegar, mas como se dará a trajetória depende de uma confluência do trabalho da equipe e tudo isso é construído num corpo que hesita em se movimentar, hesita em falar e que, quando fala, esconde aquilo que queria dizer”, confabula. Normalmente, não ensaia os atores. Em cima de indicações que lhes dá, eles improvisam. A partir disso, há uma seleção do que foi feito e refazem a cena, se necessário. Burlan costuma trabalhar com uma média de dois takes para um. “Quando convido um ator, já enxergo o personagem nele. Acredito que é mais interessante encontrar o personagem no ator do que o ator se transformar no personagem. É impossível dirigir antes que aconteça”, afirma.

Há sempre um planejamento prévio, às vezes até com storyboard. Porém, quando Burlan vai para o set, tenta esquecer tudo o que pensou, deixando os atores livres para seguirem o fluxo de encenação proposto pela cena. Ele quase nunca filma com iluminação artificial. “Fome”, por exemplo, foi todo realizado com iluminação natural. Usar iluminação natural lhe dá muito mais agilidade, o que lhe permite filmar um longa em uma semana e gastar apenas a média de R$ 10 mil por filme.

O cineasta tem contado sempre com os mesmos parceiros, o que ajuda a manter a produtividade. São eles: a atriz e roteirista Ana Carolina Marinho, os fotógrafos Rafael Nobre e Helder Martins, os montadores Marcelo Paz Nunes e Renato Maia, o finalizador Lucas Negrão, a produtora executiva Priscila Portella, além de Jean-Claude Bernardet e o ator, produtor e roteirista Henrique Zanoni, seu sócio na produtora Bela Filmes.

Burlan conheceu Zanoni em 2010, quando trabalhavam juntos em uma ONG. Foi quando fez o convite para ele protagonizar “Sinfonia de um Homem Só”. Desde então, eles se tornaram sócios na Bela Filmes, realizaram vários filmes juntos e montaram a companhia de teatro A Cia dos Homens Infames. A Bela Filmes foi fundada em 2005 em São Paulo, quando Burlan conheceu a produtora Natália Reis. Ela saiu e então entrou Zanoni.

Henrique Zanoni, sócio de Burlan na produtora Bela Filmes, atuou em “Sinfonia de um Homem Só”, interpretando um imigrante em São Paulo. © Paul Domingos

Recomeço

Cristiano Burlan teve uma trajetória de vida dura. Nasceu em Porto Alegre, em 1975, e viveu num bairro operário, de origem pobre. Mudou-se para São Paulo com uns dez anos, para o Capão Redondo. Cresceu rodeado pela violência, seja doméstica, seja policial, seja do crime. Na adolescência, interessou-se pelo cinema.

Parte dessa libertação aparece no trabalho de investigação que faz em seus documentários, em que mergulha em eventos de prisma pessoal. Assim surgiu a Trilogia do Luto, com “Construção” (2006), sobre seu pai, “Mataram meu Irmão” e “Elegia de um Crime”, em finalização, sobre sua mãe. “Quando realizo esses filmes não falo só sobre mim. No ‘Mataram meu Irmão’ não falo apenas sobre o assassinato do meu irmão, mas sobre a violência policial que opera na periferia de São Paulo. O próximo filme, ‘Elegia de um Crime’, vou investigar o brutal assassinato de minha mãe pelo seu namorado. A questão da violência doméstica que acomete muitas mulheres no Brasil é um dos temas do filme. Sempre parto do específico e do privado para chegar ao geral e ao público”, comenta.

Além de “Fome”, previsto para estrear comercialmente em 4 de agosto, e do documentário “Sermão dos Peixes”, ambos exibidos publicamente em festivais em 2015, Burlan promete uma série de lançamentos para os próximos anos, incluindo os documentários “Elegia de um Crime” e “Abecedário de JCB”. “Estopô Balaio” é um documentário sobre a residência artística do coletivo de teatro Estopô Balaio no extremo leste da cidade de São Paulo, no bairro Jardim Romano, que sofre constantemente com enchentes; “Em Busca de Borges” é uma ficção sobre um cineasta em busca do último roteiro escrito por Jorge Luis Borges, em Genebra, todo rodado na Suíça, que fez sua estreia na abertura da mostra Panorama Suíço, em junho, em São Paulo, mas ainda sem data definida para lançamento comercial; o drama “No Vazio da Noite”; e o documentário “Nelson Felix”, sobre o artista plástico homônimo. Todos eles já filmados.

Assista aqui o trailer do filme.

 

Por Gabriel Carneiro

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