Joaquim, e a consciência do mártir

De todas as figuras da história do Brasil, talvez nenhuma se preste a leituras tão distintas no cinema e na TV quanto Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira. Em 1948, Humberto Mauro assinava com a diretora Cármen Santos o roteiro de “Inconfidência Mineira”, com Rodolfo Mayer no papel do herói. Nos anos 70, houve o clássico “Os Inconfidentes”, de Joaquim Pedro de Andrade, inspirado nos Autos da Devassa; e “Tiradentes, o Mártir da Independência”, de Geraldo Vietri. A Globo, este ano, exibiu a novela “Liberdade, Liberdade”, que reencenou seu enforcamento.

Hoje, em pleno momento de divisão política no Brasil, é o pernambucano Marcelo Gomes, consagrado por “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), o responsável por reviver Tiradentes no cinema. Em vez de retratar o mito ou tentar dar conta de toda a história do alferes que morreu enforcado por decisão da Coroa portuguesa em 1792, o cineasta escolheu um recorte específico que deve diferenciá-lo de todas as obras anteriores. Em “Joaquim”, a narrativa se concentra no período em que o futuro Tiradentes ocupa o cargo de alferes da Guarda Militar e realiza viagens pelas precárias, lamacentas e perigosas estradas de Minas Gerais à procura de contrabandistas de ouro. Trata-se justamente do momento da formação de sua consciência política, antes das ações da conjuração que levaram à dura punição da Coroa portuguesa.

“A consciência libertária em Minas Gerais aparece logo após a independência dos EUA. A Constituição Americana familiariza a elite intelectual de Minas com a ideia dos ‘nativos da terra’”, explica o diretor. “Não existia ainda essa consciência de brasileiro, mas surge um sentimento de que os nativos detenham o poder político do lugar. Joaquim, embora não pertencesse a essa elite intelectual, viveu em contato com ela”. Para Marcelo, Joaquim não foi influenciado apenas pelas ideias iluministas que chegavam ao país, mas pelo caldo social e cultural daquele tempo, em que parte da elite local começava a refletir sobre a condição dos africanos que chegavam como escravos e dos índios destratados pelo Império.

“Joaquim” irá revelar um Brasil arcaico, explorado e pobre, que faz nascer os ideais de Tiradentes © Beatriz Ferrari Masson

Filme de Época despojado

A primeira ideia de Marcelo era retomar sua parceria com o ator João Miguel, um dos protagonistas de “Cinema, Aspirinas…”, na pele de Joaquim – mas ele teve de desistir do ator por problemas de agenda. Depois de muitos testes, encantou-se com o carisma e a semelhança física com o herói do ator paulista Júlio Machado, que participou de filmes como “Trago Comigo”, de Tata Amaral, e “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, de Daniel Ribeiro, e ganhou papéis de destaque em novelas da Globo, como “Verdades Secretas” e “Velho Chico”. Entre os personagens principais, o diretor escalou nomes do Grupo Galpão, mais reconhecido coletivo de teatro de Minas, entre eles Eduardo Moreira, Antônio Edson (Toninho) e Chico Pelúcio.

“Joaquim” representou para Marcelo e seu produtor, o fiel João Vieira Jr., um enorme desafio de produção: botar de pé um filme de época com o exíguo orçamento de R$ 2 milhões. Foram quatro meses na região de Diamantina, dos quais quatro semanas de filmagem, com grande elenco e locações de difícil acesso. A criatividade foi a chave para resolver a equação, graças a colaboração de dois parceiros fundamentais: o diretor de fotografia Pierre de Kerchove – em seu terceiro longa de ficção, depois da comédia “TOC” e de “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” – e o diretor de arte Marcos Pedroso – de “Que Horas Ela Volta?” e “Praia do Futuro”.

Com Pierre, o cineasta buscou uma maneira de filmar que fugisse de um certo padrão clássico associado aos filmes de época. Com cenas feitas com câmera na mão, a Diamantina de “Joaquim” aparece em cores esmaecidas das estradas cobertas de lama com as contínuas chuvas que castigavam a região. A câmera na mão busca de um registro da poética do cotidiano presente na vida de Joaquim: como morava, onde dormia, como eram suas relações afetivas, como tratava seus pacientes.

“Nos filmes históricos, existe uma tendência a utilizar uma câmera excessivamente clássica, direção de arte rebuscada, com cores excessivas e figurino pesado. Tudo isso constrói um passado glamouroso que às vezes passa na frente dos próprios personagens”, explica. “Buscamos uma direção de arte desbotada, suja, precária. Um passado sem glamour, como de fato era. Tudo o que aparece no filme tem uma função dramática, história, utilidade, dureza e secura. A câmera na mão traz uma proximidade humana e um passado mais real.”

© Letícia Simões

Um Brasil político

O despertar da consciência política de Joaquim Xavier parece encontrar um timing perfeito num momento em que o brasileiro, normalmente tido como de caráter apolítico, voltou a sair às ruas para se manifestar e defender suas posições contra e a favor do governo federal. “Foi uma experiência singular realizar o filme num período em que nunca se falou tanto de política, mas às vezes infelizmente de um modo leviano e superficial. Espero que o filme nos faça olhar o passado, entender melhor o presente e promover discussões profundas sobre nosso futuro político”, defende Marcelo. “Afinal, Joaquim era um cidadão comum querendo entender o que era ser brasileiro, refletindo acerca de como seriam as bases para a construção deste país.”

“Joaquim” começou com um convite do produtor espanhol José Maria Morales, da Wanda Films, para participar de um projeto da TV espanhola intitulado “Libertadores”. A ideia era realizar oito películas sobre protagonistas das lutas de independência na América Latina, resgatando na tela o pensamento e a obra das figuras mais relevantes do processo de emancipação do continente. Mas a crise econômica na Espanha paralisou os investimentos. Nesse momento, Marcelo já tinha mergulhado a fundo em suas pesquisas sobre a sociedade brasileira do século 18. Ele e o produtor João Vieira Jr. decidiram seguir em frente com o projeto, e foram à procura de financiamento brasileiro. Algum tempo depois, o filme foi encampado pela produtora portuguesa Ukbar Films. A paulista Dezenove Som e Imagens, de Sara Silveira, entrou como produtora associada. Boa parte da verba veio de editais conquistados: um da Petrobras, outro do governo de Pernambuco, mais o edital de coprodução Brasil-Portugal da Ancine.

“Joaquim” fará sua première mundial no Festival de Berlim, em fevereiro, onde está concorrendo na competição oficial. E Marcelo já pensa nos próximos projetos. Um sonho antigo que deve sair em breve do papel é a adaptação para cinema de “Relato de um Certo Oriente”, do amazonense Milton Hatoum. Outros projetos são uma ficção e um documentário a serem rodados no sertão de Pernambuco – mas o diretor não entra em detalhes sobre eles. Uma coisa é certa: ele adora trabalhar em parceria, e deve engatar novos filmes com seus dois grandes companheiros de criação, o mineiro Cao Guimarães (com quem rodou “O Homem das Multidões”) e o cearense Karim Aïnouz (com quem fez o ensaístico “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo”).

Por conta dos editais que possibilitaram a realização de “Joaquim” e dos centenas de longas produzidos por ano hoje no Brasil, Marcelo engrossa o coro dos que defendem a continuidade das políticas de incentivo da Ancine em momento de troca de nomes nos principais cargos da cultura no governo federal. “A Ancine realiza um trabalho impecável para promover a indústria do audiovisual, que é importante para a economia do país. Por isso mesmo, deve ser defendida e assim permanecer. O governo que está no poder atualmente promove políticas que não foram legitimadas pelas urnas, e a política cultural atual é o reflexo disso.”

 

Por Thiago Stivaletti

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