Arte para salvar golfinhos

Em uma passagem do livro “O Escritor Fantasma”, o romancista Philip Roth aproveita a ficção para um acerto de contas. Seu alter ego, o promissor Nathan Zuckerman, sempre teve o apoio familiar com a publicação de seus primeiros contos. Até escrever uma história de sua própria família judaica. Uma história que envolve mesquinharia, sentimentos tóxicos, baixezas e traições de sangue. O pai de Zuckerman o repreende carinhosamente, aconselhando a não publicar o conto para não inflamar o antissemitismo. Ao se recusar a atender o pai, Zuckerman recebe uma carta impecavelmente redigida por Leopold Wapter, um juiz judeu que é referência moral para a comunidade. Em defesa da não publicação, Wapter argumenta: “Que conjunto de valores o faz pensar que o desprezível é mais válido que o respeitável; e o chulo, mais verdadeiro que o sublime?”

Não é por acaso que Roth avalia a literatura pela ótica de um juiz. Em todas as épocas, uma espécie de função moralizante das narrativas esteve sob vigilância e julgamento. Basta lembrar o tribunal de Madame Bovary.

Hoje é consenso que levar uma personagem literária ao banco dos réus é despropositado. No entanto, o julgamento moral da ficção nunca cessou de existir. Uma de suas formas mais presentes é curiosa: exige-se das narrativas que ela cumpra funções como salvar o mundo, levantar bandeiras, corrigir injustiças, melhorar a sociedade, fazer o bem.

Trata-se de uma forma sofisticada de moralismo. Uma espécie de repressão esclarecida, de censura iluminista. Uma atualização do decrépito realismo socialista, que só admitia a arte para orientar o povo aos propósitos da revolução.

As palavras de um músico no livro “Fabián e o Caos”, de Pedro Juan Gutiérrez, tratam dessa exigência artística na Cuba ditatorial, mas continuam tendo validade:

“A arte é tensão. E escuridão. E esses dois elementos nascem do mistério. A substância essencial da arte é o mistério. Atualmente, querem que a arte sirva à política e dizem que a arte é uma arma do povo. Isso é um verdadeiro disparate. Não vão conseguir nada. A arte é um organismo independente. O mais puro e mais perfeito que a humanidade inventou. A arte não tem explicação porque é um mistério. É evanescente. Não se pode tocar, não se pode usar, não se pode explicar”.

Deste ponto de vista, para que serve a arte? Para nada. A quem ela serve? À ninguém. Só essa liberdade absoluta confere à arte seu poder de representar a complexidade e sutileza da experiência humana. Arte como exploração, não como preceito.

“Em uma era politizada, onde todos estão presos pela estreiteza da ideologia, poucas pessoas realmente acreditam que a arte oferece o espaço contemplativo necessário para nos puxar de volta do domínio da ação, a fim de nos mandar de volta mais sábios e mais plenamente humanos”, observa Gregory Wolfe em seu livro “A Beleza Salvará o Mundo”. O título é uma máxima de Dostoievski. Mas qual é o poder redentor da beleza? Na leitura de T. S. Eliot, é a capacidade de “enxergar além tanto da beleza quanto da feiura; ver o tédio, o horror, a glória”. Aí reside, na visão do poeta, a vantagem essencial de um escritor: “não ter um mundo maravilhoso com que lidar”.

Essa intuição foi compartilhada por tantos outros criadores de mundos imaginários. Milan Kundera defende que a imoralidade do romance é a sua moral, e que sua maior proeza é a criação de um campo imaginário em que o julgamento moral fica suspenso. Para Flannery O’Connor, o escritor está mais interessado no que não compreendemos do que naquilo que entendemos.

Em tempos onde ser “do bem” é um valor para ser divulgado, é preciso ter desconfiança com a arte limpinha. Segundo o romancista Jonathan Franzen, parte do trabalho do escritor é arrumar encrenca. Não por acaso, foi o que ele conseguiu com seu último romance, que tem o significativo título de “Pureza”. No tribunal crítico dos salvadores da humanidade, o romance tem personagens muito desequilibrados.

Quando uma criança problema chega em casa toda suja de lama, é frequente a mãe reclamar que ela só faz arte. Talvez essa seja uma ilustração razoável do fazer artístico. Criar é se sujar na lama, não o garoto que mantém a gola da camisa impecável.

 

Por Ricardo Tiezzi, escritor e professor

One thought on “Arte para salvar golfinhos

  • 20 de março de 2017 em 21:06
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    A gênese do sentimento artístico é a mesma do sentimento religioso: a busca do Belo, do sublime, do transcendente, de Deus, da “causa em si”, do predicado sem o sujeito, do mundo numênico kantiano que está além de interpretações, do perfeito. A arte deve sempre estar além do bem e do mal, acima de qualquer código moral, pois a moral é temporal, enquanto a arte é atemporal, eterna, como Deus.
    Muito bom o texto e bem propício nestes dias sombrios em que a arte foi tomada por militantes que a reduzem a obras panfletárias de causas temporais.

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