Festival de Gramado

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado

O pianista e maestro João Carlos Martins, de 77 anos, ocupou o centro das atenções na noite inaugural do Festival de Cinema de Gramado. Primeiro, ele participou de concerto da Orquestra Sinfônica do município, na Rua Coberta, que leva ao Palácio dos Festivais. Em seguida, subiu ao palco com Mauro Lima, diretor de sua cinebiografia “João, o Maestro”, para sessão hors concours, acompanhado da produtora Paula Barreto, do poderoso clã cinematográfico carioca. Ela conseguiu levantar R$ 9 milhões para viabilizar esta superprodução rodada no Brasil, no Uruguai e nos EUA (boa parte do filme é falada em inglês, pois lá João viveu alguns dos mais importantes momentos de sua trajetória como pianista). Subiram ao palco, também, o ator Rodrigo Pandolfo, a quem cabe reviver João Carlos Martins em sua juventude (o papel tem imenso destaque), e as atrizes Fernanda Nobre e Aline Moraes, intérpretes de sua primeira esposa e da atual, Carmen. O maestro foi recebido com aplausos calorosos. O filme também foi aplaudido.

O novo longa de Mauro Lima, o mesmo de “Meu Nome Não é Johnny” e “Tim Maia”, conta com elenco notável. Rodrigo Pandolfo está ótimo, Alexandre Nero, o João da fase de cabelos brancos, mostra-se competente, e o menino Davi Campolongo dá conta do recado. Conta também com perfeita sincronia entre as mãos dos atores nas teclas do piano (até o pianista Arthur Moreira Lima ficou impressionado com o que viu) e seus 14 números musicais (muito Bach e também Ginastera e Ravel) são poderosos e apaixonantes (a eles, nenhum melômano resistirá). Os dois incidentes que imobilizaram as mãos do grande pianista – um tombo num improvisado treino de futebol com o time da Portuguesa e pancada recebida em assalto na Bulgária – estão bem narrados. O que falta ao filme é contextualização histórico-política e o desvendamento de outros ofícios do cidadão João Carlos Martins, que foi empresário, secretário de Cultura de São Paulo e até arrecadador de fundos, via caixa dois, para campanha eleitoral de Paulo Maluf. Irmão do influente jurista Ives Gandra Martins, João foi envolvido no escândalo Pau Brasil e processado.

Mauro Lima argumentou, no debate do filme, que tal desvio pelo mundo da política quebraria a harmonia de sua narrativa. E que o que interessava a ele era entender o que levou um menino tímido, que sofria bullying na escola, a transformar-se em um pianista arrojado e capaz de receber elogios calorosos nos mais importantes jornais norte-americanos. Para o cineasta, a explicação é freudiana: a pulsão sexual do jovem pianista alimentou sua vida amorosa e profissional, com rara fúria. Teve muitos amores, iniciou-se num bordel com muitas mulheres (em Cartagena de Índias, na Colômbia, no filme, trocada por Montevideo) e seria capaz de trocar uma noite de trabalho por uma noitada erótica.

Paula Barreto, que lutou com garra para materializar o filme, não negou o pacto com a poderosa Fiesp e com o Sesi, que aparecem em destaque em desfecho de evidente carga institucional. “Tive que aceitar as condições impostas por eles, que nos ajudaram muito. Mas a Fiesp tem os posicionamentos políticos dela e nós, os nossos, bem diferentes” (Mauro Lima contou que quando filmou lá, o pato amarelo do Skaff destacava-se na paisagem). A produtora lembrou que o filme exigia filmagens nos EUA e no Uruguai, e que não se viabilizaria sem a Fiesp e muitos outros apoios (orçamento de R$ 9,2 milhões). Filmar em Cartagena de Índias estava fora de cogitação: “não tínhamos parceiros lá e encareceria muito”. Já no Uruguai, “além de parceiros, encontramos três teatros maravilhosos. Um deles passou-se pelo Carnegie Hall, que nos cobraria diária de U$200 mil. Então, reduzimos nossas filmagens em Nova York a uma só semana, barateando custos”. E acrescentou: “como meu irmão, Bruno Barreto, diretor de ‘Flores Raras’, é sindicalizado nos EUA, pagamos caro, alguns anos atrás, por três dias de filmagem”. Já para “João, o Maestro”, em sete dias, “gastamos bem menos, pois Mauro Lima não é sindicalizado em território norte-americano”.

“João, o Maestro” é um dos fortes candidatos a representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro. Mas terá rivais de peso a enfrentar. O maior deles, “Bingo, o Rei das Manhãs”, sólido longa-metragem de estreia de Daniel Rezende, que já concorreu ao Oscar de melhor montador (por “Cidade de Deus”). E correndo por fora há filmes como “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé, “Como nossos Pais”, de Laís Bodanzy, “O Filme da minha Vida”, de Selton Mello, “Joaquim”, de Marcelo Gomes, e – por mais absurdo que pareça – a comédia blockbuster “Minha Mãe é uma Peça 2”, centrada em ator carismático (Paulo Gustavo) e em trama progressista e em fina sintonia com nosso tempo (aceitação de novas formas de viver e amar). O maior trunfo de “João, o Maestro”, é sua história baseada na superação (o pianista que vence as dificuldades e se reinventa como maestro e incentivador de orquestra proletária). Hollywood gosta desta pegada. “Bingo, o Rei das Manhãs” tem um protagonista que se formou na pornochanchada e consumiu doses cavalares de cocaína. Isto não agrada muito à Academia. Mas como construção cinematográfica é muito mais filme que “João, o Maestro”.

Depois da sessão do filme inaugural, houve a premiação de personalidades que marcaram a história do Festival de Gramado, como Romeu Dutra, um de seus criadores, e Esdras Rubin, um de seus diretores (responsável, na Era Collor, por sua internacionalização, com recorte latino-americano, já que a produção brasileira de longas tornara-se insuficiente para alimentar dois festivais – o de Brasília e o gaúcho, os mais antigos do país). Quem se apavorou com a lista de 12 homenageados, além dos quatro grandes prêmios gramadenses – o Oscarito, para Dira Paes, o Kikito de Cristal para Soledad Villamil, o Abelin para Otto Guerra e o Cidade de Gramado para Antônio Pitanga – acalmou-se. Foram homenageadas quatro personalidades, em cerimônia rápida e sem discursos. Os oito que faltam serão homenageados em blocos de quatro, em mais duas noites, sem arroubos retóricos.

Após “João, o Maestro” e as homenagens, foi exibido o primeiro concorrente da edição número 45 de Gramado: “O Matador”, sétimo longa-metragem de Marcelo Galvão, que já triunfou em Gramado com “Colegas”, comédia protagonizada por portadores de síndrome de Down. O novo filme, que dialoga com o “nordestern” (o faroeste cangaceiro), se fez representar pelos produtores (à frente a poderosa Netflix), pelo cineasta e por dezenas de atores. Há muito não se via um filme com tantos personagens. Nomes poderosos, como a luso-francesa Maria de Medeiros, e o português Diogo Morgado somam-se a um francês (Etienne Chicot) e a uma infinidade de brasileiros (Marat Descartes, Daniela Galli, Mel Lisboa, Tayla Ayala, Nill Marcondes, Deto Montenegero, Francisco Gaspar, Igor Cotrim etc. etc.), de difícil reconhecimento pela maquiagem pesada e pelos cenários empoeirados. A trama, violenta e mirabolante, coloca ênfase em morticínio permanente. A todo instante, evocando confusa influência de Tarantino, Sérgio Leone e de outros nomes do western spaghetti, o filme mata um  personagem com um balaço reforçado cinematograficamente por closes e recursos sonoros. O filme pretende-se bem humorado. Mas ninguém riu na sessão do Palácio dos Festivais (só a enorme equipe de “O Matador” divertiu-se muito).

No debate com a crítica e o público, o diretor foi telegráfico. Disse que não pode revelar o custo desta produção, a primeira de um longa brasileiro pela Netflix; que sua narrativa não é sádica com seus personagens e que o filme não será exibido em cinemas. Só em streaming (via Netflix). E mais: conhece, mas não gosta de nossos filmes de cangaço, porque seus atores são teatrais. Citou a sequência da morte de Corisco (Othon Bastos), em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha. “Na hora de sua morte, Corisco pula. Toda a sequência é muito teatral. Eu prefiro o realismo (alguém corrigiu: o naturalismo), não aquele jeito folclórico”(não explicou o que entende por folclore).

Na saída do auditório de debates do festival, no Hotel Serra Azul, um grupo de feministas lamentava o tratamento dado por Marcelo Galvão às mulheres presentes em “O Matador”. Mas o assunto não entrou na pauta do enxuto debate gramadense (representante da Netflix pediu que ele fosse sintético e durasse entre 30 e 40 minutos).

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