Fest Brasília – Dupla do Recôncavo baiano serve “Café com Canela”

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

Mais um grande atraso, causado por problema técnico na exibição do curta-metragem “Tekoha – O Som da Terra” (na Mostra Brasília),  fez com que a competição nacional terminasse bem mais tarde que o previsto. E obrigou a imensa platéia do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro a passar horas de pé, em longa fila. Mas a simpatia e afetividade do longa baiano “Café com Canela” mudou o astral da quarta noite festivaleira. O filme, dirigido pelos mineiros Glenda Nicácio e Ary Rosa, radicados há sete anos no Recôncavo baiano, realmente compensou a longa espera e foi muito aplaudido. É, desde já, forte candidato ao Troféu Candango do Júri Popular.

Antes de “Café com Canela”, foi exibido o curta alagoano “As Melhores Noites de Veroni”, dirigido pelo jovem Ulisses Arthur. Como Glenda e Ary, Ulisses estudou cinema na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Emocionado, ele contou, no palco, que o cinema alagoano ainda luta por editais de fomento e enfrenta grandes dificuldades. Para confirmar o que dizia, contou que 32 anos separam seu filme do último curta 100% alagoano a representar o estado no Festival de Brasília (“Memórias de Vida e do Trabalho”, de Celso Brandão)

Ulisses explicitou a gênese de seu filme: “percebi que havia na cidade de Cachoeira uma rua povoada só por mulheres. Os homens só apareciam quando havia caminhões em frente às casas”. Curioso, ele foi investigar o que se passava e descobriu que as moradoras daquela rua eram mulheres de condutores de caminhões e que viviam à espera dos maridos”. Elegeu então uma fictícia “mulher de caminhoneiro” como sua protagonista.

Veroni (Lais Lira), a jovem esposa, é bonita, mãe de uma menina pequena e adora cantar. Aperfeiçoa sua voz com uma professora-tecladista e espera pelo marido-caminhoneiro (Jorge Adriani). O filme registra os pesadelos e anseios cotidianos da jovem, que deseja segurar o marido em casa, quem sabe vender o caminhão e montar um mercadinho. Registra, também, suas pequenas artimanhas para driblar os longos dias de espera, ao lado da filha. O público recebeu o filme com aplausos calorosos.

Mas quem arrebatou para valer a plateia foi o longa “Café com Canela”. No palco, os diretores e seus atores deram um show de simpatia e comunicabilidade. Levaram seus textos escritos em um caderninho, o que evitou a praga da prolixidade desgovernada (mal que a cada ano atravanca o ritmo da Mostra Brasília) e, ainda por cima, cantaram delicioso samba de roda, ao som de palmas ritmadas e amplificadas pelo público.

Glenda e Ary contaram que o filme foi feito com participação de comunidades do Recôncavo (Cachoeira, São Felix e Muritiba) e que todos os figurinos foram confeccionados por cooperativa de costureiras de Maragogipe. E que os reduzidos R$ 800 mil consumidos na produção vieram da TV Educativa da Bahia e da Ancine. E defenderam, com entusiasmo, o processo de descentralização da produção audiovisual brasileira.

O filme, registraram os diretores, foi realizado integralmente “no interior” da Bahia, a 150 km da badalada Salvador. E eles fizeram questão de colocar moradores e paisagens das três pequenas cidades do Recôncavo em primeiro plano. O que vemos na tela são personagens negros – mulheres como protagonistas – e cenários que não costumamos ver nem em novelas regionais da Globo, nem nos filmes ambientados em Salvador.

“Café com Canela” é uma soma de pequenas vidas, imersas em problemas, dores e alegrias cotidianas. Tudo temperado com muito humor. Uma personagem, a bela Violeta (Aline Brunne), se destaca. Ela transita com sua bicicleta entre Cachoeira e São Felix, cidade separadas pelo Rio Paraguaçu e unidas por uma grande ponte. A região foi cenário de dois outros importantes, embora esquecidos, filmes baianos, “Coronel Delmiro Gouveia”, de Geraldo Sarno, e “O Mágico e o Delegado”, de Fernando Coni Campos).

Violeta visita Margarida (Valdinéia Soriano), mulher perturbada pela dor da perda de um filho. E convive com os vizinhos Ivan (Babu Santana), na pele de um médico gay, companheiro de Adolfo (Antônio Fábio), mais velho, viajado e dono dedicado de um cãozinho. Nas reuniões em bares onde tomam cerveja, o grupo ouve histórias hilárias de Cidão (Arlete Dias, do Bando de Teatro Olodum, assim como Valdineia Soriano). Baiana extrovertida, Cidão imanta a tela quando aparece, com seu humor rasgado e seu vocabulário saboroso. Uma de suas expressões encantou o diretor-roteirista e o público: “que nem toucinho no sal”. Aliás,  o público do Cine Brasília veio abaixo de tanto rir quando, numa conversa etílica com os amigos, ela contou história vivida num ônibus, envolvendo o furto de um relógio.

No debate do filme, o afeto deu as cartas. Os elogios se multiplicaram. Houve depoimentos emocionados de espectadoras negras, emocionadas com a complexidade e positividade das  personagens afro-baianas. As atrizes Valdinéia Soriano e Aline Brunne relembraram o ótimo clima nas filmagens e como compuseram, respectivamente, a sofrida Margarida, machucada pela perda do filho, e a bem casada Violeta, solidária, espirituosa e boa mãe. Valdinéia é veterana nos palcos baianos e uma das estrelas do Bando Olodum. Aline é estudante de Artes Visuais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e só fizera, na adolescência, pequenas  participações em peças infantis. Custou a aceitar o desafio de protagonizar o filme. Deu conta do recado, com desenvoltura.

A presença do carioca Babu Santana no elenco rendeu histórias deliciosas durante o debate. Os diretores assistiram, na TV, quando montavam o elenco de “Café com Canela”, a uma longa entrevista de Marília Gabriela com o astro black. Babu revelou que sonhava interpretar um homossexual, já que só o convidavam para papeis de homens brutos. Na hora, Glenda e Ary perceberam que ali estava o gay do filme. E, para ir mais longe, decidiram que ele seria médico. O ator adorou o papel e tomou o rumo do Recôncavo baiano. Contou a seus anfitriões que sua família era originária de São Felix, um dos cenários do filme. Mas que nem sabia se tinha parentes vivos na região. Tinha e os reencontrou. Um deles até fez participação no filme, interpretando um rapaz que azara a animada Cidão.

O Recôncavo baiano já viu o filme e amou o resultado. Informados da boa repercussão do filme no Festival de Brasilia, avisaram que farão outra sessão em praça pública. E terça-feira próxima, 27 de setembro, Glenda e Ary retomam as filmagens de seu segundo longa-metragem, de nome “Ilha”. Os dois mineiros esperam seguir, profissionalmente, no Recôncavo. Se depender deles, farão muitos e novos filmes na região que escolheram para estudar, viver e filmar.

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