Mostra Internacional de Cinema de SP

Como estabelecer linhas conceituais num festival que reúne 394 filmes? Pois a maior maratona cinéfila do país – a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que este ano chega à sua 41ª edição – apresenta, pela voz de sua diretora, Renata Almeida, alguns dos caminhos trilhados.

“Nosso público” – garante Renata, que assina a seleção com ajuda de colaboradores – “perceberá que mostraremos filmes ligados a importantes vertentes, das quais destaco pelo menos três: obras ligadas à questão dos refugiados, problema grave em nossos dias, ao meio-ambiente, que sofre terrível degradação, e à intersecção de linguagens, pois a cada dia as fronteiras tornam-se mais tênues”. Pelo menos, no cinema. E complementa: “teremos, ainda, um poderoso núcleo histórico, dedicado a filmes do passado, que merecem ser vistos pelas novas gerações”.

Para exemplificar, Renata cita alguns títulos selecionados para este ano: “abriremos a Mostra (nesta quarta-feira, 18 de outubro, no Auditório Oscar Niemeyer do Ibirapuera) com ‘Human Flow – Não Existe Lar se Não Há para Onde Ir’, do chinês Ai Weiwei. Este filme tem a questão dos refugiados como sua razão de ser. E, como ele, selecionamos vários outros de temática semelhante”.

A diretora da Mostra SP estabelece correlação com a origem artística de Weiwei, a criação plástica, ao lembrar que há importantes filmes que refletem sobre tal universo. “O grande vencedor de Cannes – ‘The Square’, do sueco Ruben Östlund – tem o ambiente das artes plásticas e performance como foco”.

No terreno da degradação da natureza, Renata cita “Uma Verdade Mais Inconveniente”, de Boni Cohen & Jon Shenk, que sequencia “Uma Verdade Inconveniente”, realizado dez anos atrás, para refletir sobre o aquecimento global, ambos com Al Gore, ambientalista e ex-vice presidente dos EUA na função de mestre de cerimônia. A este documentário somam-se muitos outros filmes, incluindo o brasileiro “Rio de Lama”, de Tadeu Jungle. “Este filme não é inédito em São Paulo” – admite – “mas mesmo assim, vamos mostrá-lo, pois trata de tema que merece muitas vitrines: a tragédia de Mariana, cidade histórica de MG, que perdeu vidas e viu lama tóxica poluir brutalmente as águas de seu rio”.

“No campo da intersecção de linguagens” – lembra Renata – “a liberdade criativa avança, a cada edição da Mostra”, pois “as fronteiras tornam-se cada vez mais tênues”. Se acontecesse na vida, o acontece no audiovisual contemporâneo, os refugiados não teriam que passar pela situação que Weiwei sintetizou no título de seu filme (“não existe lar se não há para onde ir”).

Entre os filmes que fazem avançar a linguagem do cinema, a diretora da Mostra destaca “24 Frames”, do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016), concluído por seu filho, e lembra que serão exibidos curtas-metragens em realidade virtual (aqueles a que assistimos com óculos especiais). Mas, neste terreno, Renata avisa que a Mostra ainda é cautelosa: “não programamos nenhum longa-metragem em realidade virtual, pois acreditamos que o público ainda está se familiarizando com este avanço tecnológico”.

No poderoso núcleo histórico, dedicado a filmes do passado, Renata festeja o amplo cardápio oferecido pela Mostra SP 41: “vamos homenagear, com retrospectivas, três grandes nomes do cinema de expressão francesa (Agnès Varda, que em março receberá um Oscar especial), Paul Vechialli e Alain Tanner. Mãe de um filho chamado Jonas (fruto de seu casamento com o criador da Mostra, o saudoso Leon Cakoff), Renata lembra que tal nome foi escolhido em homenagem ao mais famoso filme do suíço Tanner: “Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000” (1999).

Como o país em foco, este ano, é a Suíça, Tanner ganhará retrospectiva de seus principais filmes (sete em mostra que totaliza 46 títulos, sendo um deles, assinado por Jean-Luc Godard, o suíço que tornou-se o mais francês dos cineastas, mas nunca rompeu laços com o país natal). O diretor de “Pierrot le Fou” comparecerá com projeto de nome provocador (“Ascensão e Queda de uma Pequena Produtora de Cinema”, feito para a TV suíça, em 1986). Um detalhe curioso: em “Visages Villages” (“Rostos, Povoados”, em tradução livre), o mais recente filme da octogenária Agnès Varda (dirigido em parceria com o fotógrafo JR), Godard está “presente”. Ou melhor, ausente. Ela agendara visita à casa do amigo, na Suíça. Ao chegar, encontrou bilhete ininteligível colado na porta. O dono da casa não a esperava (está tudo documentado no filme de Varda & JR).

Da diretora da obra-prima “Os Catadores e a Catadora”, considerado pelo BFI (Instituto Britânico de Filmes) um dos dez maiores documentários do mundo, a Mostra SP vai exibir onze longas. Do também octogenário Paul Vechialli serão exibidos oito filmes. Ele receberá o Prêmio Leon Cakoff, ela, o Prêmio Humanidades.

Entre as joias raras da era muda, a Mostra apresentará mais um clássico – ano passado foi “A General”, de Buster Keaton, este ano será “O Homem Mosca”, filme que gerou uma das mais famosas sequências da história do cinema, aquela em que Harold Lloyd fica perigosamente pendurado nos ponteiros de um relógio. A sessão, ao ar livre, acontecerá no Parque do Ibirapuera, com acompanhamento ao vivo da Orquestra jazz Sinfônica.

O Brasil também terá presença marcante no Núcleo Histórico da Mostra SP. Renata explica a grande mudança deste ano: “Até o ano passado, em parceria com a Cinemateca Brasileira, promovíamos o Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual (27 de outubro), agora, resolvemos comemorar a Semana do Patrimônio, com exibição de filmes brasileiros, por sete noites, no vão livre do Masp”. E, entre os títulos selecionados, há três que têm Paulo José, um dos homenageados deste ano (com o Troféu Leon Cakoff), como figura central: “O Padre e a Moça”, “O Homem Nu” (para apavorar a brigada moralista que anda ameaçando nossos museus) e “Macunaíma”. Outro filme sobre Paulo José – “Todos os Paulos do Mundo”, de Rodrigo Oliveira e Gustavo Ribeiro – será exibido na Mostra Brasil. O ator virá a São Paulo para receber seu troféu e comemorar seus 80 anos, completados em março último.

Mostra Brasil

A seleção brasileira, este ano, é a maior da história da Mostra SP: serão exibidos 64 filmes. E uma novidade chega com força: dois júris escolherão, entre 55 candidatos, o melhor filme ficcional e o melhor documentário, que farão jus ao Prêmio Petrobras e polpudas somas em dinheiro (R$ 200 mil para a melhor ficção e R$ 100 mil para o melhor doc).

Entre os selecionados, estão o polêmico “Vazante”, de Daniela Thomas (no centro de debate que lembra os provocados por “Terra em Transe”, “Xica da Silva”, “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”), o inquieto “Abaixo a Gravidade”, de Edgard Navarro, o substantivo “Gabriel e a Montanha”, de Fellipe Barbosa, o instigante “A Moça do Calendário”, de Helena Ignez, o urgente “Operações de Garantia para a Lei e a Ordem”, de Júlia Murat, o delicado “Pela Janela”, de Carolina Leone, o premiado (em Brasília) “Arábia”, de Uchoa & Dumans, o conciso “Callado”, de Emília Silveira, e o terror “As Boas Maneiras”, de Rojas & Dutra, que acaba de vencer o Festival do Rio.

Entre os documentários, um título se anuncia desafiador: “Em Nome da América”, de Fernando Weller. Na origem do projeto estaria notícia, jamais confirmada, de que Steve Spielberg, nascido em dezembro de 1946, teria vindo ao Nordeste brasileiro, prestar serviço voluntário nos Corpos da Paz (Peace Corps) e, assim, fugir de convocação para a Guerra do Vietnã (1959-1975). Os EUA temiam que o Nordeste, onde as Ligas Camponesas ganhavam peso, se transformasse em uma “nova Cuba”. Para que tal destino não se materializasse, passou a mandar jovens cidadãos norte-americanos para, aqui, prestar serviços a pobres e desassistidos brasileiros. Deixando Spielberg de lado, é nestes voluntários reais dos Peace Corps que o cineasta se concentra.

A produção brasileira se faz representar, ainda, por seis longas-metragens na competição Novos Diretores: “Foro Íntimo”, de Ricardo Mehedff, “O Beijo”, de Murilo Benício, “Antes que Eu me Esqueça”, de Thiago Araklian, “Aqualoucos”, de Victor Ribeiro, “Meu Tio e o Joelho de Porco”, de Rafael Terpins, e “Organismo”, de Jeorge Pereira. Os filmes deste segmento da Mostra disputam o Troféu Bandeira Paulista com produções de diversos países. Disputam, também, o Prêmio do Público para melhor longa brasileiro.

Panorama internacional

340 filmes da Mostra SP (30 curtas e 300 longas-metragens) chegam de todos os cantos de mundo. Há filmes europeus, asiáticos, norte-americanos, da Oceania, latino-americanos e um ou outro africano.

Nossos vizinhos de fala hispânica estão representados por 34 produções. Destaque para “Zama”, de Lucrécia Martel, com Matheus Nachtergaele no elenco, “A Cordilheira”, com Ricardo Darín interpretando o presidente da Argentina, o belo “A Noiva do Deserto”, de Cecília Atán & Valeria Pivato, o simpático “Sambá”, de Laura Guzmán & Israel Cárdenas (a mesma dupla dominicana de “Dólares de Areia”), “A Telenovela Errante”, do chileno Raul Ruiz (concluído postumamente por sua viúva Valeria Sarmiento), “Sin Muertos No Hay Carnaval”, do equatoriano Sebastián Cordero, e “El Vendedor de Orquídeas”, do venezuelano Lorenzo Vigas (o mesmo de “De Longe te Observo”, Leão de Ouro em Veneza, dois anos atrás).

Da Europa, chegam títulos de peso como “O Outro Lado da Esperança”, do finlandês Aki Kaurismaki, “Nelybov” (“Sem Amor”), do russo Andrey Zvyagintsev (do poderoso “Leviatã”), “L’Amant d’un Jour, do francês Philippe Garrel, o mais fiel dos discípulos da Nouvelle Vague, “Uma Questão Pessoal”, da dupla italiana Irmãos Taviani, “Happy End”, do austríaco Michael Haneke, e “Napalm”, do grande documentarista francês, Claude Lanzmann. O Leste Europeu se faz representar, entre outros filmes, por dois romenos (cinematografia que mobiliza nossas atenções há mais de uma década): “Ana, meu Amor”, de Calin Netzer, e “Pororoca”, de Constantin Popescu.

Da Ásia e do Oriente Médio, chegam os japoneses Naomi Kawase (“Esplendor”), Hirozaku Kore-Eda (”O Terceiro Assassinato”) e Takeshi Kitano (“Outrage Coda”), o israelense Amos Gitai (“A Oeste do Rio Jordão”) e o saudita “A Poetisa”, de Brockhaus & Wolff.

Da Oceania, pelo menos um título deve merecer nossa atenção: o australiano “Doce País”, de Warwick Thornton, realizador do comovente e vigoroso “Sansão e Dalila” (2009).

Um filme – “O Jovem Karl Marx”, de Raoul Peck – merece destaque em separado, por suas múltiplas fontes. O realizador haitiano alcançou, este ano, merecido destaque (foi finalista ao Oscar) com o documentário “Eu Não Sou seu Negro”, retrato do dramaturgo e escritor norte-americano, James Baldwin, negro como Peck. Pois, agora, os paulistanos assistirão a esta ficção sobre o filósofo alemão, autor de “O Capital” e, junto com Friedrich Engels, do “Manifesto Comunista”. “O Jovem Karl Marx” uniu produtores franceses, alemães e belgas. O cineasta, cidadão do mundo, vive entre Porto Príncipe, Paris e Nova York.

Renata Almeida, ao contrário de Leon Cakoff, que se negava a citar destaques entre o imenso cardápio da Mostra SP, chamou atenção, em coletiva de imprensa, para alguns títulos: “o novo Kiarostami, grande amigo da Mostra e de São Paulo, concluído por seu filho, a série ‘Berlim Babilônia’, que chega da Alemanha, e ‘Mar de Tristeza’, documentário realizado por Vanessa Redgrave, uma das diretoras dos 98 filmes femininos selecionados”. E mais: “os novos filmes de Aki Kaurismaki, Nicolas Klotz e Michael Hanecke e o longa em episódios – ‘Where Has the Time Gone?’ – que Jia Zhang-Ke e Walter Salles ajudaram a fazer, unindo realizadores dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)”.

A Mostra Internacional de São Paulo encerrará sua 41ª edição no dia primeiro de novembro, com entrega de prêmios e apresentação hors concours de “A Trama” (“L’Atelier”), de Laurent Cantet. O cineasta francês, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, anos atrás, com o ótimo “Entre os Muros da Escola”, estará em São Paulo para apresentar seu novo filme. Haverá, finda a maratona, “fase de repescagem” com títulos selecionados para exibição no CineSesc. E “itinerância por cidades do interior de São Paulo e por unidades do Sesc”. Este ano, os filmes da Mostra serão exibidos em mais de 30 espaços (cinemas tradicionais, museus, escolas e centros culturais). O mais novo espaço a agregar-se aos palcos do festival paulistano é o Instituto Moreira Salles, o IMS, com sua moderníssima sede na Avenida Paulista.

Por Maria do Rosário Caetano

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