Tata Amaral

É uma coincidência, mas “Hoje”, o quarto longa-metragem de Tata Amaral (melhor filme no Festival de Brasília em 2011) fala exatamente sobre um momento do Brasil em que diversas pessoas sumiram vítimas da repressão militar dos anos 70, e hoje seus familiares ainda aguardam uma solução para esses desparecidos, para colocarem um ponto final também em suas vidas. Essa espera é a mesma de Vera (Denise Fraga), personagem que teve a vida em suspensão à espera de um fim para seus dramas não resolvidos no passado. Todo o filme se passa em um dia, e trata da volta de um desaparecido político quando sua “viúva” recebe uma indenização por seu “desaparecimento”. “Uma coincidência”, afirmou Tata, nesta entrevista exclusiva para a Revista de CINEMA, onde relata o desafio de falar de uma história de amor, que na verdade se foca na ausência, mas que é também uma história que existe por causa dos sonhos políticos de mudar o mundo e as consequências disso nos dias atuais. É uma história adaptada do livro de Fernando Bonassi, “Prova ao Contrário”, de 2003, e reflete as propostas cinematográficas de Tata, enquanto autora. A cineasta considera que cada filme é um recriar, é partir do zero e do novo.

Destacam-se as performances de Denise Fraga (melhor atriz no Festival de Brasília) e do uruguaio César Troncoso, o marido que ressurge do nada. Ambos seguram a história dentro de um espaço teatral, em um apartamento durante um dia de mudança. Entre quatro paredes, eles expressam seus mundos interiores cheios de desarranjos com a realidade. “Eu falo de um grande amor cuja experiência ficou no passado, época em que eles viviam construindo sonhos de futuro arriscando a própria vida”, diz Tata.

Tata é paulista, uma das mais importantes realizadoras e premiadas do cinema brasileiro. Iniciou no cinema em 1986 com dois curtas-metragens marcantes (em parceria com Francisco César Filho) “Queremos as Ondas do Ar” e “Poema-Cidade”. É diretora de filmes como “Um Céu de Estrelas” (1997), “Através da Janela” (2000) e “Antonia” (2006), que também rendeu uma série para a Rede Globo. Em 2009, dirigiu a série “Trago Comigo”, para a TV Cultura, e que pretende transformar em um longa-metragem. Costuma trabalhar seus roteiros em parceria com Jean-Claude Bernardet e as adaptações de obras de Fernando Bonassi, contemporâneo da época em que estudou cinema na USP.

Revista de CINEMA – Esse é o primeiro filme político que você faz?
Tata – Que trata diretamente deste assunto, é. O filme trata da história de uma mulher que compra um apartamento com o dinheiro que ela recebe de indenização do Estado brasileiro pelo desaparecimento do marido. É um filme que trata dessas pessoas que viveram no estado de suspensão durante décadas. Essa mulher não ficou somente esperando encontrar o marido desparecido, buscando notícias do marido, ela ficou também sentido falta de alguma coisa, deixando-a nesse estado de suspensão. O Estado não reconhecia a morte daquelas pessoas, então, por exemplo, uma mulher não pode se casar de novo porque ela não é viúva, por mais que ela saiba que o marido foi assassinado pela ditadura, que não reconhece o assassinato. Um filho não pode viajar sozinho sem autorização do pai, uma criança, e não tem autorização porque o pai é um desaparecido. Então, essas pessoas viveram em estado de suspensão da continuidade natural de suas vidas. Em 1995, foram feitas algumas investigações e o Estado precisou decretar praticamente a morte daquelas pessoas. O Estado brasileiro reconheceu que assassinou aquelas pessoas e indenizou os seus familiares. É assim que começa a nossa história. A Vera compra o apartamento com o dinheiro dessa indenização, ela está querendo tocar a sua vida pra frente, recomeçar a partir desse estado claro, definido, de viuvez. Ela não mais está esperando encontrar notícias do marido. Ela não sabe como ele morreu. E no dia em que ela se muda para o apartamento que ela comprou, ele volta e eles têm um encontro.

Revista de CINEMA – Interessante porque é um tema bem político mesmo. Mas o filme não é político. É tipicamente feminino em sua essência. Se alguém não entendesse de política, assistindo ao filme, entenderia uma obra feminina. Que filme existe além da política em “Hoje”?
Tata – Eu acho que tem uma história de amor mesmo. Uma história de amor. O “Hoje” fala disso.

Revista de CINEMA – Que tipo de amor é esse retratado no filme?
Tata – Eu acho que eu falo de um grande amor cuja experiência ficou no passado, época em que eles viviam construindo sonhos de futuro arriscando a própria vida. Então, o reencontro dos dois, décadas depois dessa separação brusca e brutal. Ele foi arrancado do convívio pela ditadura. Essa relação ficou em suspensão, não foi terminada. O filme fala desses reencontros com pessoas que você, por uma razão ou por outra, deixou pra trás. Acho que todo mundo que teve um grande amor vai se emocionar.

Revista de CINEMA – Este é um filme bem autoral, mas você não era adulta nessa época. Que memórias você tem da época da ditadura. Chegou a militar?
Tata – Eu nasci em 1960. Eu fui militante, mas no final dos anos 70. Outro momento, um momento em que a própria ditadura já estava desfalecendo, felizmente. No começo dos anos 70, todos esses grupos, essas militâncias de esquerda foram dizimados, trucidados. Mas essa época braba eu não vivi. E é muito interessante, porque, num certo sentido, a repressão foi vitoriosa, porque mal deixou elo entre uma geração e outra que tem dez anos de diferença. Para a minha geração, quando eu comecei a militar, foi um recomeço, os quadros eram muito jovens também. Os dirigentes da minha organização eram muito jovens.

Revista de CINEMA – Como você acha que seu elenco conta uma história política e uma história de amor ao mesmo tempo?
Tata – Felizmente, as pessoas que viveram esses anos negros estão vivas. A ditadura dizimou a militância, alguns foram exilados, outros ficaram aqui, foram presos, foram soltos só com a anistia. Ainda temos como contar a história dessas pessoas, e é por isso que, inclusive, a gente quer a verdade. É preciso abrir os arquivos e descobrir como realmente as pessoas morreram, é importante para a história brasileira.

No filme do Patrício Guzmán, “Nostalgia da Luz”, ele entrevista um arqueólogo que trata dos vestígios da história. Em paralelo, relata a história daquelas mulheres que peneiram a areia do deserto do Atacama para descobrir os ossos dos seus parentes, que foram enterrados ali e retirados, para não deixar provas. E esse arqueólogo interroga a população: “alguém desenterrou, alguém foi o motorista do caminhão que levou esses corpos pra jogar em algum lugar, quem foram essas pessoas?”. Podem contar as histórias para os parentes, para saberem aonde fazer o enterro, importante fazer enterro. A gente trata disso nesse filme. E os atores, a Denise Fraga e o César Troncoso, tomaram contato com estas histórias, com a história dessas pessoas aqui no Brasil. E mostrei depoimentos que eu fiz para uma minissérie chamada “Trago Comigo”, tem a história da Clara, mulher do Marighella, uma pessoa que fica esperando. Ela tem esse amor nos depoimentos dela. São pessoas que estão vivas, estão aí. O nosso elenco bebeu muito dessas histórias, nessa fonte, a gente conversou muito sobre isso.

O César Troncoso vem de um país, é uruguaio, que teve ditadura, e que também não puniu seus torturados. Os dois atores e personagens vêm de países onde houve ditaduras sanguinolentas, cujos responsáveis pelos assassinatos ainda estão impunes. Se o César fosse um argentino, por exemplo, o filme seria outro, porque os argentinos lidam com a sua história hoje. Eu acho que “Hoje”, talvez, seja o único, ou pelo menos um dos poucos filmes brasileiros, que tratam desse período da história do Brasil, da ditadura, hoje. O filme não é uma história que acontece no passado, ele é uma história hoje, como esse passado tem a ver com o nosso presente.

Revista de CINEMA – Acho que nossos filmes ainda tratam os dramas da ditadura com algum elemento romântico no meio da história, como se não quiséssemos falar apenas de um assunto. Enquanto que os argentinos não querem romantizar, eles tratam esse tema como um ímã atraindo tudo em volta. A relação deles com a ditadura foi muito dura. E a gente tem uma diferença. Da onde você acha que vem isso?
Tata – Eu não sei se é um romantismo. O que eu sinto, e o filme se baseia nisso, é que nós vivemos numa sociedade de pacto. Nós não punimos, não identificamos e não punimos os assassinos, nós convivemos com eles. Para haver o perdão, você precisa pedir, esses assassinos sequer pediram perdão, eles nem apareceram para dizer que foram eles. Acho que a Vera, nesse sentido, é uma alegoria da sociedade brasileira, porque ela tenta tocar a vida pra frente a partir do reconhecimento da morte dele, mas quem matou? O que aconteceu realmente? O que houve com essas pessoas? Esse é o ponto.

A Rita Sipahi, em “Trago Comigo”, disse uma coisa muito bonita: “A sociedade que não trata a tortura é uma sociedade que aceita a tortura”. E, na verdade, a gente aceita a tortura. Hoje a tortura não é mais aos presos políticos, a tortura é para os pobres, que vão presos, eles são torturados nas cadeias. Isso está acontecendo agora.

Revista de CINEMA – Você acha que esse filme pode ajudar neste momento, quando se instala a Comissão da Verdade, momento em que precisa se pensar novamente sobre esse período da nossa história?
Tata – Eu acho que essa questão do filme de ajudar em alguma coisa aconteceu sem querer, porque não foi pensado isso de uma forma tão clara, foi intuitivo. A história do filme foi baseada num romance do Fernando Bonassi, de 2003, e levamos muito tempo buscando dinheiro para o filme, que só saiu agora, nesse ano em que a Comissão da Justiça e da Verdade foi estabelecida. Adoraria ter feito o filme antes, lutei muito para ter feito esse filme antes. Mas agora eu espero que ele faça parte desse contexto de discussão mesmo, embora eu também tenha certeza que a história dele não para no tempo.

O filme trás algumas coisas, onde eu busquei encontrar uma representação cinematográfica para essa situação de uma vida movediça, onde as coisas não são claras, e onde você não sabe muito bem o que é esse estado que essa pessoa, a Vera, viveu. Aonde ele foi visto pela última vez? A pessoa diz: “ele foi visto no Rio de Janeiro”. Ela vai até lá, aí dizem: “eu acho que eu o vi passar, e ele estava muito machucado, mas talvez ele tenha ido para Pernambuco”, aí vai pra Pernambuco. Então, enquanto não se esclarecem os fatos, a história vai ser movediça tanto quanto a vida da Vera. E eu busquei trazer isso para dentro do apartamento, para dentro do filme, através das projeções, que não são imagens definidas, elas acontecem em superfícies, elas não têm uma clareza, uma limpeza. Mesmo através das versões, da história que ela vai buscando, eles dois vão contando as versões que eles mesmos souberam da sua própria história. Foi isso que a gente buscou trazer para o cinema, essa situação real. De certa forma, o filme também vai além do tema. Não só porque é uma história de amor, duas pessoas que não se vêem há décadas, mas como também o tema gera uma forma material, cinematográfica.

Revista de CINEMA – Você se coloca como uma cineasta assumidamente autoral, como você se vê no cinema?
Tata – Como uma autora? Sem dúvida, assumida totalmente. Eu não tenho dúvida disso. Nenhuma. Absoluta. Eu acho que eu vivo pra isso. Vivo pra minha família, meus amores, meu trabalho, mas eu realmente estou o tempo todo realizando. Sou uma autora e vejo, claramente, que cada filme que eu faço, é diferente do outro em muitos sentidos. Eu recrio. Como ninguém até agora quis pagar muito dinheiro pra mim, então eu faço meus filmes, que são uma redescoberta cada um, sempre um recomeço. É um aspecto também que define meu trabalho. Por mais que “Hoje” cita meus outros filmes em várias cenas, deliberadamente, ele é um filme novo na minha vida, ele tem um papel muito importante na minha vida pessoal. Tudo o que eu mobilizei ali, embora eu não faça parte dessa história que o filme conta, mas tem muito da minha história no filme. A Denise (Fraga) foi um espelho pra mim.

Revista de CINEMA – Os atores são muito presenciais, em um cenário pequeno eles parecem gigantes. A Denise Fraga é uma atriz reconhecida pela atuação com a comédia, e você a trouxe para o drama, você deve ter pensado nesse risco.
Tata – Eu pensei que seria um risco. Mas em nenhum momento eu tive dúvidas de que fosse dar certo, porque a Denise é uma excelente atriz. Poucas vezes eu tive um encontro com atrizes tão grande como ela. Ela é extremamente inteligente, generosa e parceira. Não tem o que mais um diretor pode querer. Muito incrível como ela entendeu o que eu queria. Muitas vezes a gente se comunicava sem palavras, nos hiatos, nas reticências. Ela construiu com extrema delicadeza esse personagem que está meio alheio. Parece aérea às vezes. Ela tem um tempo, que a própria Dê [Denise Fraga] na montagem ajudou a construir, definir.

Tata Amaral e Denise Fraga sob a iluminação onírica do apartamento onde acontece a história de "Hoje". © Ding Musa

Revista de CINEMA – Parece que tudo é uma surpresa pra ela, inclusive os homens.
Tata – Exatamente. Ela está acordando. Ela está acordando de um estado de paralisia, de torpor, sei lá do que. E a Denise fez muito bem isso, enfim, toda a relação dela com o Luis [César Troncoso] é tão sensível. É um filme de silêncio, de olhares. Eles construíram o filme, os personagens e as emoções no silêncio, nas pouquíssimas palavras. Eu acho que eu fui muito privilegiada por ter acontecido esse encontro na minha vida entre os três, no sentido de dar suporte e dar apoio, a gente planejou o filme, mas cada momento era uma descoberta mesmo. Por mais que a gente viesse já preparados. Por exemplo, um momento em que ela vai falar sobre sua dor, a ausência era tão grande que ela imaginou seu suicídio, e tem uma projeção atrás, aquilo foi pra gente uma surpresa. A equipe inteira ficava feliz, inclusive o montador. Ele pode mudar muito isso. Eu sempre acho que o trabalho do ator tem a ver com o do montador. Um montador pode destruir o trabalho de um ator se ele não criar os tempos necessários, não construir um aprofundamento. E a Denise faz isso com uma delicadeza. Esse alinhamento da Denise vai sendo aprofundado com muita sutileza até o momento em que ela finalmente acorda no final. E isso ela trabalhou com os olhares, com o tempo das respirações. Ela montava a respiração.

Revista de CINEMA – Por que o filme é isso também, não é?
Tata – É.

 

Por Hermes Leal

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