Solitários na multidão

“Solidão é a gente demais”. A frase do escritor Guimarães Rosa foi usada de epígrafe em “A Alma do Osso” (2004) pelo diretor Cao Guimarães. No novo trabalho, que ele e o agora parceiro criativo Marcelo Gomes desenvolvem, a máxima roseana volta a fazer sentido como mote. O mineiro Cao e o pernambucano Marcelo estão, desde fevereiro, às voltas com a montagem de “O Homem das Multidões”, primeira codireção entre os dois. Totalmente filmado em Belo Horizonte (MG), o longa é uma adaptação livre do conto “O Homem da Multidão”, escrito pelo americano Edgar Allan Poe (1809-1849) e publicado pela primeira vez em 1840.

Pelo menos até o segundo semestre, Marcelo deve ir e voltar da capital mineira para encontros com Cao. Os dois têm se internado num estúdio de trabalho por vários dias, dando forma a um filme que, conforme prega a filosofia criativa de Cao, “nasce na montagem”. É uma reunião forte e, sem que nenhum deles pudesse ter previsto, bastante oportuna: ambos estiveram em foco na mídia ao saírem vencedores com os troféus de melhor filme no 45º Festival de Brasília, em setembro de 2012. Cao ganhou na categoria de documentário, por “Otto”, e Marcelo levou na de ficção, por “Era uma Vez Eu, Verônica” (empatado com “Eles Voltam”, de Marcelo Lordello).

“É uma vertigem”, resume Cao Guimarães, em conversa com a Revista de CINEMA, ao ser perguntado sobre como tem sido a montagem de “O Homem das Multidões”. “Você só pensa nisso, dorme sonhando com isso, ou então nem dorme, e de repente vai vendo o filme aparecer. Ao contrário da filmagem, que trabalha com cronograma e uma ordem estabelecida, a edição tem o tempo dilatado, no qual o filme é realmente escrito e ganha o corpo que nem se imagina que ele tenha”.

Trabalhar com roteiro, vários atores e equipes grandes é novidade para Cao Guimarães – como se percebe em projetos como “Andarilho” (2006) e “Ex-Isto” (2010) –, mas não a Marcelo Gomes, vindo de pelo menos duas experiências mais “tradicionais”: “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005) e “Era uma Vez Eu, Verônica”. Ainda assim, há muitas novidades também ao pernambucano. “Eu nunca tinha filmado tudo em digital, por exemplo”, revela. “Isso permitiu que a gente deixasse uma cena rodando por uns 25 minutos, coisa impensável quando se trabalha com película”. De qualquer forma, trata-se de um típico BO (baixo orçamento): o filme, coprodução entre a REC (Pernambuco) e a Cinco em Ponto (Minas), deve girar em torno de R$ 1,6 milhão.

Urbanidade e linguagem

A grande descoberta de Marcelo na experiência de fazer “O Homem das Multidões” foi conhecer intensamente Belo Horizonte. “Fiquei impressionado. É uma cidade muito cinematográfica”, exalta. “BH é metrópole, mas cercada de roça para todo lado. Então existem grandes misturas entre o cosmopolitismo e a tradição”.

A dupla e uma equipe de vários colaboradores fincaram a sede de produção num hotel da movimentada Praça Sete, no coração da capital. Ao longo de quatro semanas de filmagem, entre setembro e novembro de 2012, fizeram cenas em pontos-chave, como a Praça da Estação, a Galeria do Ouvidor, as Ruas Caetés e Carijós, vagões do metrô e o Cine Santa Tereza. A certa altura, eles passaram a ser reconhecidos por transeuntes de cada um dos locais. “Ficamos impressionados com as reações das pessoas à equipe e à câmera. Muita gente olhava para nós, via o equipamento e perguntava: ‘Vocês que estão fazendo aquele filme no centro, né?’. Isso criou uma harmonia muito legal”, conta Marcelo. Cao completa: “Eu mesmo nunca tinha feito um filme todo em BH. Podíamos ter ido para qualquer metrópole, mas sinto falta de uma cinematografia sobre a minha cidade”.

O ator Paulo André (de camisa branca), vagando pelas ruas de Belo Horizonte: um dos personagens perdidos na multidão. © Beto Magalhães

“O Homem das Multidões” nasceu como fecho da autoproclamada “trilogia da solidão”, desenvolvida por Cao Guimarães a partir de 2004, iniciada com “A Alma do Osso” (lançado nos cinemas apenas em 2010) e seguida por “Andarilho”.

“Depois de mostrar um solitário nas montanhas e outro nas estradas, eu queria agora alguém da cidade que quisesse estar sozinho, mas não conseguisse, por conta do excesso de gente”, descreve o cineasta.

Cao conheceu Marcelo Gomes em 2003, quando este veio a Belo Horizonte para montar “Cinema, Aspirinas e Urubus”. O pernambucano assistiu ao curta então recém-finalizado de Cao (“Da Janela do meu Quarto”), ficou encantado com o trabalho e tornou-se, ao mesmo tempo, coprodutor do filme e amigo do mineiro – inclusive hospedando-se na casa dele durante o período. Tempos depois, ambos foram exibir seus trabalhos no Festival de Cannes, em 2005. Nessa época, Cao contou a Marcelo seu fascínio pelo conto de Edgar Allan Poe e a vontade de usá-lo como base para concluir sua trilogia. A parceria estava formada.

Como brinca Marcelo Gomes, “foi um encontro fora do eixo – não só geográfico, mas também de linguagem”. E diverte-se ainda mais: “Depois que “O Homem das Multidões” ficar pronto, a gente pensa em estrear em Vitória da Conquista (BA). Além de ser a terra do Glauber (Rocha), fica exatamente na metade do caminho entre Minas e Pernambuco”.

Montagem da solidão

O roteiro, escrito a quatro mãos, foi burilado sem pressa. O hibridismo de gêneros que caracteriza os trabalhos individuais dos dois realizadores ganhou formas surpreendentes tanto a um quanto a outro. O script dividiu-se em três partes: o registro documental e metalinguístico das discussões dos cineastas sobre os encaminhamentos do filme; uma série de depoimentos de figuras anônimas cuja escolha de vida é pela completa solidão (a equipe colheu dez horas desse tipo de material, com dezenas de pessoas); e o entrecho ficcional, narrando o cotidiano do personagem Juvenal (Paulo André), homem sozinho que gosta de se misturar à multidão de gente circulando pelos principais pontos de Belo Horizonte.

É claro que, na fase de montagem, muita coisa mudou. Não à toa, até meados de março, a dupla já tinha feito pelo menos dez cortes do filme a partir das aproximadamente 40 horas de material bruto. “Sabe o veio de ouro que você procura na rocha e de repente encontra? Acho que já sabemos onde está o nosso veio”, comenta sorridente Marcelo Gomes, fazendo mistério. Como um coro bem ensaiado, os dois diretores completam as frases um do outro quando questionados sobre os rumos da edição. (Cao) “O filme, que era sobre solidão, virou um filme de amor entre solitários…” (Marcelo) “Um filme de amor que descamba na solidão, ou então um filme de solidão que descamba pro amor, você que vai escolher…” (Cao) “A parte ficcional ficou mesmo muito forte…” (Marcelo) “E estamos seguindo o nosso fluxo, deixando maturar”.

Apesar de chamarem o entrecho de Juvenal de “parte ficcional”, a curva dramática do personagem – completada pela presença da atriz Silvia Lourenço, outra figura solitária em cena – não seguirá os moldes típicos da ficção. Paulo André, ator do grupo de teatro Galpão, filmou boa parte de suas cenas infiltrado entre anônimos e transeuntes nas ruas da cidade, sem ações previamente combinadas e permitindo que o acaso surgisse. “As situações pelas quais passou o Paulo foram sendo incorporadas à narrativa, fazendo deste um filme de ‘fratura exposta’”, conta Marcelo Gomes. Cao, com habilidade, complementa: “Era como um ‘filme-locação’: qualquer coisa que acontecesse no ambiente da filmagem influiria no andamento do roteiro”.

A atriz Silvia Lourenço, outra figura solitária em cena, que atua ao lado de Paulo André. © Beto Magalhães

Para Paulo André, desconhecido do grande público (no cinema, ele pode ser visto em “Fronteira”, de Rafael Conde, e “Moscou”, de Eduardo Coutinho), a experiência de se integrar ao movimento humano de Belo Horizonte foi intensa. “Eu era só mais um rosto no meio de todo mundo. Tinha gente que sabia da filmagem e pensava que eu era outro dos figurantes”, relembra ele. Paulo fez três semanas de ensaios antes das filmagens. Diariamente, ia ao centro da cidade para se relacionar com a “fisicalidade das pessoas”.

“Sou tímido, como o personagem, e precisava me aproximar de quem estava por ali. Atuar, por si só, é uma situação de constrangimento. A sensação potencializava a minha presença”, reflete ele. Paulo ainda revela que, já filmando, não fazia ideia do que exatamente passava pela cabeça de Cao e Marcelo. “Era uma loucura genial. Eles iam lançando as pedras do jogo pra gente combinar”.

 

Por Marcelo Miranda

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