Balanço do Festival de Paulínia, por Maria do Rosário Caetano

Grande safra brasileira

O Festival de Paulínia encerrou, na noite do último domingo, sua sexta edição. Um júri corajoso (Artur Xexeo na presidência; mais a cineasta Anna Muylaert; a diretora da Mostra SP, Renata Almeida; o espanhol Carlos Cuadros; e o roteirista Thiago Dottori) evitou promover reforma agrária de prêmios (trofeu Menina de Ouro + fartas quantias em dinheiro). Por isto, concentrou-se em dois títulos: o pernambucano “A História da Eternidade”, do estreante em longa-metragem, Camilo Cavalcante, e “Casa Grande”, do carioca Fellipe Gamarano Barbosa. Poderiam ter atribuído mais prêmios a um dos títulos mais fascinantes da safra pauliniana, a inusitada (e original) comédia musical “Sinfonia da Necrópole”, de Juliana Rojas, que ganhou apenas o prêmio de melhor trilha musical (realmente excelente). Outro filme que merecia algum trofeu era “Infância”, de Domingos Oliveira. Mas o júri não quis praticar o distributivismo. E quis premiar, mesmo concentrando prêmios, projetos mais ousados e nomes menos badalados.

Para fazer valer os conceitos que nortearam a premiação, o júri até subverteu desejos (ou coordenadas) dos diretores. O ator Marcello Novaes, por exemplo, foi inscrito como ator principal. O júri preferiu premiá-lo como coadjuvante. Foi o único nome global a conquistar a Menina de Ouro. Atrizes com papéis fortes como Fernanda Montenegro (a matriarca Dona Mocinha, de “Infância”) e Deborah Secco (portadora de HIV positivo em “Boa Sorte”) foram preteridas. Ganharam duas paraibanas (as veteranas Marcélia Cartaxo e Zezita Matos) e uma cearense (a jovem Debora Ingrid). Ingrid estava inscrita como coadjuvante. O júri não quis saber. Deu à trinca, que está excelente em “A História da Eternidade”, as Meninas de Ouro de “melhor atriz”.

O melhor ator foi, mais uma vez, o pernambucano Irandhir Santos. Em seis edições de Paulínia, ele venceu três: em 2009, com “Olhos Azuis”, em 2011, com Febre do Rato, e agora com “A História da Eternidade”. O ator, que vem brilhando na novela “Meu Pedacinho de Chão” (na pele de um capataz que lembra um Dom Quixote toureiro), começa neutro no filme de Camilo. Depois, ao dublar “Fala”, sucesso de Ney Matogrosso, na praça pública de uma corrutela empoeirada no sertão nordestino, arrebata a todos. E Irandhir nos convencerá ainda mais de seu imenso talento ao sofrer dois ataques epiléticos. Camilo Cavalcanti contou, no debate do filme, que Irandhir se preparou ao seu jeito e que leu com empenho o livro “Dostoievski e Eu – A Epilepsia em Nossas Vidas”. No mesmo debate, a jovem professora Claudia Rizziere contou que pesquisa a vida do ator pernambucano desde que ele fez o suassúnico “Quaderna”, em “A Pedra do Reino” (na Globo). Ela já soma mais de mil materiais sobre ele (fotos, reportagens, entrevistas, cartazes, catálogos etc).

Os prêmios atribuídos a “Casa Grande” (e recebidos com elegância, humildade e fala inteligente por seu diretor e roteirista) foram merecidíssimos. Gamarano é uma força jovem e fez um filme aparentado com “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça (que analisou e deu dicas para o roteiro). E buscou parceiros em Pernambuco (fotógrafo, preparadora de elenco e a melhor atriz coadjuvante, a hilária Clarissa Pinheiro, em quem o júri fez muito bem em apostar). O melhor roteiro para Gamarano caiu como uma luva. Ele sabe engendar tramas, inspirar-se em suas próprias vivências e escrever excelentes diálogos. Que achado ter mobilizado o forrozeiro paraibano-carioca Gentil Cordeiro para o elenco.

Lírio Ferreira convocou Gamarano para ajudá-lo a escrever seu  terceiro longa ficcional, “Sangue Azul”. O filme, rodado na paradisíaca ilha de Fernando de Noronha, traz a avassaladora imaginação cinematográfica de Lírio (colírio, delírio, líricoferreira, líriopartido) e seu amor e diálogo com os grandes do cinema (Eisenstein, Welles e muitos mais). Mas peca pelo excesso de personagens e pela trama dispersiva. Sérgio Oliveira ajudou o cineasta a completar o roteiro. Mas na hora de filmar, Lírio se perde intencionalmente. Ama seus (muitos) atores e aceita (e estimula) todos os improvisos. Daí o filme, que é belíssimo, fica à deriva. Mais delírio que lírico. O prêmio de melhor fotografia para Mauro Pinheiro Jr. (que trabalha o PB e a cor) é merecidíssimo. O filme enche nossos olhos de beleza. Uma beleza indomada. Mas dispersiva. Quem vê o foco preciso de Gamarano em “Casa Grande” fica a imaginar o que eram os encontros dele com Lírio, para escrever “Sangue Azul”. Um, ao escrever, recorre à síntese de Graciliano Ramos (Gamarano), o outro à profusão de palavras-imagens-ideias de Guimarães Rosa…

“Boa Sorte”, de Carolina Jabor, era, da safra pauliniana, o mais – digamos – fashion. Sua protagonista, Deborah Secco, interpreta uma aidética que vive, numa clínica, uma última história de amor com um garoto de 17 anos. A atriz se entregou ao papel com imensa paixão. Emagreceu 11 quilos, mas, ainda assim, exala muita energia para quem vive seus momentos derradeiros. A fotografia da uruguaia Barbara Fernandez (de “Whisky” e “A Mulher sem Cabeça”, este de Lucrécia Martel) é bela e delicada. Carolina dirige bem os atores, o roteiro de Pedro e Jorge Furtado é enxuto, mas a história não nos transmite o desespero que deveria transmitir. Mesmo assim, o filme – que Truffaut, nos anos de jovem turco, qualificaria de cinèma de qualitè – mobilizou o público. Até porque Deborah fez, no palco, um belo discurso. Disse que o filme era um divisor de águas em sua carreira (sempre linda e sedutora em papéis de periguete na TV e de devoradora de homens, como em “Bruna Surfistinha”) e que de agora em diante quer escolher papéis mais densos e arriscados. Linda e sexy num vestido preto que desenhava seu corpo, maquiada de forma vistosa, ela, do palco, arrebatou os fãs. Especialmente, os de seu fã-clube organizado na região de Paulínia, que marcou hora para conversar com ela. E ela os recebeu com carinho de estrela. Carolina Jabor, que filmou “Boa Sorte” grávida (do marido, Guel Arraes, coprodutor do filme) agradeceu os dois prêmios (Júri Popular e direção de arte para o craque Claudio do Amaral Peixoto) com muita alegria e falas muito articuladas. Sem esnobismo. Contou, inclusive, que quando o dinheiro para produzir o filme se integralizou, ela resolveu enfrentar o set grávida mesmo. Já estava cansada de esperar. Ela e Deborah, que disse sonhar com a versão cinematográfica de “Frontal com Fanta” (do livro “Tarja Preta”, de Jorge Furtado), desde que gravara, com ele, no sul, a série “Decamerão”. Que pensou em comprar os direitos do conto para que ela o protagonizasse e produzisse. Mas a produtora Conspiração saiu na frente. Aí, quando soube que Carolina ia fazer o filme, a atriz correu atrás, fez testes e jurou que aquele papel era dela. Só dela. Dobrou a cineasta.

Dos três documentários do festival – “Castanha”, de David Pretto (inscrito como ficção, mas que é filme “de fronteira”), “Aprendi a Jogar com Você”, de Murilo Salles, e “Neblina”, de dois jovens realizadores paulinenses – levaram dois prêmios. O som de “Castanha” fez jus à Menina de Ouro. Já o filme de Murilo, laureou a montadora Eva Randolph. “Neblina” nada ganhou. E não merecia. A dupla tinha um grande tema nas mãos – as ruínas de uma vila inglesa em Paranapiacaba. Vila que abrigou trabalhadores da Estrada de Ferro, construida por ingleses, no século XIX, para levar mercadorias até Santos, no litoral paulista. Só que os moradores do lugar (gente articulada, inteligente, incluindo Caio, um adolescente de 14 anos, apaixonado pela memória do lugar) acabam perdidos em meio a uma pesada e confusa narração off, que abarca ciclos econômicos do Império Romano aos nossos dias. Parece que Daniel Pátaro e Fernanda Machado, os diretores, nunca ouviram falar no seminal livro “Cineastas e Imagens do Povo”, de Jean-Claude Bernardet. Leitura à qual devem recorrer, com urgência.

Paulínia Film Festival

Este é o novo nome do Fest Paulínia. Este ano, o festival recebeu astros internacionais (Jacqueline Bisset, Abel Ferrara, Danny Glover, Michael Madsen, Georges Gachot, Tony Gatlif, o menino que protagoniza “O Pequeno Nicolau” e “As Férias do Pequeno Nicolau” etc). Mas não colocou filmes estrangeiros na competição. Não houve tempo hábil. A saída foi montar uma Mostra Internacional de caráter informativo. A maioria dos títulos (sete dos oito escalados) pertence ao acervo da Imovision, de Jean-Thomas Bernardini.

A programação, reduzida para seis dias, nos obrigou a uma maratona de dois curtas e três ou quatro longas por dia. Pauleira total. Vi todos os filmes brasileiros (9 da competição + o filme inaugural: “Não Pare na Pista – A Melhor História de Paulo Coelho”, de Daniel Augusto) e os oito internacionais. Felizmente, Paulínia não se transformou num arremedo de Hollywood. Havia filmes da Jordânia (“O Casamento de May”), do Afeganistão (“A Pedra da Paciência”), do México (“Paraíso”, produção da Canana, de Gael Garcia Bernal e Diego Luna), da França (“Geronimo”, “As Férias do Pequeno Nicolau”), da Suíça e Brasil (“Samba”), dos EUA e França (“Bem-Vindos a NY”) e dos EUA (“A Imigrante” ou “Era uma Vez em NY”, este da distribuidora Europa). Como se vê, a pluralidade deu as cartas. E quatro continentes se fizeram representar. Só faltou a África. E Jean-Thomas Bernardini recebeu, pelos 25 anos da Imovison, uma mais que merecida Menina de Ouro. Foi emocionante ver 700 pessoas (o Theatro Municipal de Paulínia abriga 1.300 espectadores), numa tarde de domingo, assistindo, pela primeira – e talvez única – vez na vida, a um filme JORDANIANO! E por falar no Theatro paulinense: a projeção, em seus aspectos visual e sonoro, continua a melhor do Brasil. Depois da premiação e antes da exibição do filme de Abel Ferrara, Cacá Diegues recebeu uma Menina de Ouro pela obra em conjunto.

LISTA DOS VENCEDORES DO FEST PAULINIA 2014:

LONGA-METRAGEM

* A História da Eternidade (PE) :  Melhor filme pelo juri oficial e pela Crítica (Abraccine),  diretor (Camilo Cavalcante), atriz (Marcélia Cartaxo, Zezita Matos e Débora Ingrid), ator (Irandhir Santos)

* Casa Grande (RJ):  Prêmio Especial do Juri, roteiro (Fellipe Gamarano Barbosa e  Karen  Sztajnberg), atriz coadjuvante (Clarissa Pinheiro), ator coadjuvante (Marcello Novaes)

* Boa Sorte (RJ) :  melhor filme pelo juri popular, melhor direção de arte (Claudio  Amaral Peixoto)

* Sangue Azul (PE) :  melhor fotografia (Mauro Pinheiro Jr), melhor figurino (Juliana Prysthon)

* Sinfonia da Necrópole (SP):  melhor trilha sonora (Juliana Rojas, Marco Dutra e Ramiro Murillo)

* Aprendi a Jogar com Você (RJ): montagem (Eva Randolph)

* Castanha (RS): melhor som (Marcos Lopes)

CURTA-METRAGEM

* O Clube (RJ) :  melhor filme pelo juri oficial,  pela Crítica (Abraccine) e pelo Público, melhor direção (Alain Ribeiro).

* Bom Comportamento (RJ): Prêmio Especial do Juri.

* Edifício Tatuapé Mahal (SP):  melhor roteiro (Carolina Markowicz e Fernanda Salloum)

 

Por Maria do Rosário Caetano

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