A eterna jornada da procura

O cineasta Roberto Gervitz, conhecido por seus fortes documentários políticos dos anos 70 (“Greve Geral”, “Braços Cruzados, Máquinas Paradas”), retorna agora à vertente mais pessoal e existencialista do seu cinema com “Mãos de Cavalo”, aquela que o consagrou em 1986 com “Feliz Ano Velho”, sensível adaptação do romance autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva. O filme acaba de ser rodado em Porto Alegre, tem no elenco Mariana Ximenes e Armando Babaioff, e se encontra em fase de montagem.

Em seu novo filme, Gervitz afirma sua marca com um cinema focado em personagens em momentos críticos de sua vida, ao buscar inspiração em um jovem escritor radicado em Porto Alegre, um dos jovens expoentes da literatura contemporânea, Daniel Galera, 34 anos, e seu segundo romance, “Mãos de Cavalo”. Esta será a segunda adaptação de uma obra de Galera para o cinema – a primeira, “Até o Dia em que o Cão Morreu”, foi para as telas pelas mãos de Beto Brant e Renato Ciasca, em “Cão Sem Dono” (2007).

“Galera cria personagens que buscam caminhos sem saber que os estão buscando. Não há a menor garantia de que chegarão a algum lugar, uns chegam e outros não. Mas são personagens que têm um buraco, uma falta. Não estão acomodados onde estão, mesmo que pareçam”, explica Gervitz.

Vida vazia

Em “Mãos de Cavalo”, Hermano (Armando Babaioff), um jovem médico de Porto Alegre, prepara uma escalada de alto risco numa montanha na Terra do Fogo, na ponta sul do continente. Sua mulher, Adri (Mariana Ximenes), com quem vive há sete anos, está grávida, mas mesmo com a perspectiva de ser pai em breve, Hermano não desiste da escalada. A viagem é uma prova de coragem que ele deve a si mesmo. Também será a reparação de uma culpa, por não ter feito nada para evitar o brutal espancamento de Bonobo, seu melhor amigo de adolescência, que lhe deu o apelido de Mãos de Cavalo.

Mariana Ximenes e Armando Babaioff em cena de “Mãos de Cavalo”, uma incursão do diretor no universo dos personagens. © Ana Mendes

Gervitz foi apresentado ao livro pelo também diretor Jorge Durán, seu corroteirista em “Jogo Subterrâneo” (2005). “Hermano está fugindo precisamente daquilo que busca sem saber. O que me atraiu no livro foi a construção de um universo de aprisionamento e de culpa, de um anestesiamento do viver. Um mundo fechado em si mesmo, e a ausência de um olhar mais generoso para o outro e para a própria vida. A visão do passado como algo absoluto e determinante de uma vida sem pulsação. Mas, por outro lado, a possibilidade de desconstruir esse olhar e a partir daí, quem sabe, poder recomeçar”, diz o diretor.

Produção gaúcha

Sua principal parceira na empreitada foi a produtora Monica Schmiedt, que botou de pé uma produção de orçamento médio (R$ 3,8 milhões) e cinco semanas de filmagem em locações como a orla do Rio Guaíba, na zona sul da capital gaúcha. Também foi de Monica, praticante de escalada, a sugestão do Salto Ventoso, no município de Farroupilha, a uma hora e meia de carro de Porto Alegre, um impressionante cenário de rica vegetação com uma cachoeira de 55 metros de altura situada no centro de uma enorme garganta rochosa. Lá, Hermano e seu amigo Renan se preparam para a futura escalada no Monte Sarmiento, na Terra do Fogo.

A equipe fez oito visitas à locação antes das filmagens, e storyboards foram desenhados para preparar as cenas de escalada. Seis escaladores acompanharam o câmera e cuidaram da segurança da operação. Babaioff, estrela das cenas mais complexas e arriscadas, treinou bastante e fez a maior parte das cenas sem dublê – Thiago Ballen, um dos maiores escaladores do país, foi usado para poucas cenas mais complicadas. “No fim, aprendemos a admirar esse esporte, que requer altas doses de concentração, método, dosagem de energia e domínio muscular. Mas jurei a mim mesmo que nunca mais filmo escalada…”, brinca Gervitz. Uma pós-produção digital também está prevista.

Storyboards das cenas de escaladas foi uma opção do diretor para faciliar a concepção das filmagens

Parte do orçamento foi obtido por meio do Prêmio de Coprodução Brasil-Uruguai, que previa a contratação de uma produtora uruguaia minoritária, parte da equipe vinda do país vizinho, e no elenco o uruguaio Cesar Troncoso (“O Banheiro do Papa”, “Faroeste Caboclo”), que vive o médico de Adri e amigo do casal.

O diretor conta que, de todos os seus filmes, este foi o que exibiu maior planejamento na pré-produção, por conta do grande número de locações externas, fora de estúdio. A época de filmagem, de meados de abril ao final de maio, foi decidida com base nos dados meteorológicos que apontam esse período do ano como o menos chuvoso e de melhor luz.

Bastidores das filmagens

Operando a câmera na mão a maior parte do tempo, o fotógrafo Lauro Escorel, habitual parceiro de Gervitz, resolveu com criatividade os imprevistos que surgiam. “Nas visitas de preparação ao Salto Ventoso, sempre fazia sol, mas às vezes nos deparávamos com um tempo tão escuro que parecia noite. O Lauro conseguiu otimizar os poucos refletores que levou, e as filmagens resultaram muito fortes visualmente”, conta o diretor. “Um atraso de uma semana por conta do tempo teria sido trágico para as finanças do filme, e como se tratava da última semana, não havia mais a opção chuva. Mesmo assim, em um dia de chuva torrencial, conseguimos rodar duas cenas no galpão de um Sacolão que estava fechado por se tratar de um feriado. Quando fomos a Salto Ventoso, abriu um sol de rachar”, lembra.

Os atores foram escolhidos em testes ao longo de seis meses, com a colaboração de Nara Sakarê e seu grupo AP43. A preparação do elenco adulto tomou três semanas, uma em São Paulo e duas em Porto Alegre. Foi o primeiro trabalho no cinema do pernambucano Armando Babaioff, que vive o protagonista Hermano – ele é mais conhecido de novelas da Globo como “Sangue Bom” e “Ti Ti Ti”. “Armando está em 90% das cenas do filme e foi incansável. Demonstrou coragem e paixão ao viver um personagem contido, mas não gelado”, elogia Gervitz.

Cena de making of com Armando Babaioff e Daniel Volpi treinando para as filmagens de escaladas em Salto Ventoso, no Rio Grande do Sul. © Ana Mendes

Mariana Ximenes, que vive Adri, estava há tempos na lista de atrizes com quem o diretor queria trabalhar. “Ela tem um alto grau de entrega e ao mesmo tempo possui uma grande consciência profissional. Demonstra ter um enorme prazer em atuar e está sempre aberta a descobrir novas coisas”. No filme, a relação do casal é narrada linearmente, mas por elipses, entrecortadas por flashbacks que remetem à adolescência de Hermano e à sua amizade com Bonobo que termina de forma trágica.

A escritura do roteiro exigiu uma empreitada tão desafiadora quanto à das cenas no Salto Ventoso. No livro, o discurso principal acontece na cabeça do personagem, e Gervitz teve de se dedicar a um desenho maior dos personagens secundários, especialmente dos personagens femininos. O livro de Galera se passa em boa parte na adolescência de Hermano – e esse universo não interessava tanto ao diretor, que já havia visitado a adolescência em “Feliz Ano Velho”. O roteiro privilegiou então o Hermano adulto, com 35 anos, que no livro só se conhece pela maneira como narra e enxerga o próprio passado. “Procurei refletir sobre a solidão e o narcisismo pós-modernos. O que é liberdade, afinal? É fazer o que te dá na telha, ou a possibilidade infinita de escolher e se comprometer? E conectado a esse conceito de liberdade, está a pergunta: o que é a coragem? Qual o seu sentido menos óbvio e aparente?”.

“Mãos de Cavalo” será lançado no segundo semestre de 2015.

 

Por Thiago Stivaletti

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