O cinema híbrido de Gabriel Mascaro

Com apenas 31 anos, o pernambucano Gabriel Mascaro já dirigiu, desde 2008, cinco longas, dois curtas e criou várias instalações – além de estar montando seu próximo longa, provisoriamente intitulado de “Valeu Boi!” –, fazendo dele um dos cineastas brasileiros mais produtivos no cenário atual. Tido como um nome proeminente do documentário contemporâneo, propondo novas formas narrativas ao gênero, com filmes como “Um Lugar ao Sol” (2009), “Avenida Brasília Formosa” (2010) e “Doméstica” (2012), Mascaro tem se dedicado, nos últimos filmes, a trabalhos ficcionais sem abrir mão do estilo que o marcou nos documentários. Com seu filme terminado mais recente, “Ventos de Agosto” (2014), que estreia em 13 de novembro, pela Vitrine Filmes, Mascaro ganhou uma menção especial no 67º Festival de Locarno, um dos principais do mundo, onde foi exibido na competição principal. Do 47º Festival de Brasília, saiu com os prêmios de melhor fotografia e de melhor atriz, para Dandara de Morais. Foi ainda selecionado para festivais como San Sebastian, Vancouver e BFI London, entre outros.

“A estratégia ficcional surge para mim mais como uma possibilidade de compartilhar a invenção. Para mim, ela é um jogo potente. E o jogo de construção de personagem e negociação da representação do corpo é o que mais me interessa para além dos rótulos”, afirma Mascaro, que não deixa de se interessar por fazer documentários.

O que pode parecer uma guinada na carreira de Mascaro é, na verdade, uma continuidade natural de seu trabalho, que valoriza a hibridização do documentário com a ficção. Ao longo de sua carreira, filmes como “KFZ-1348” (2008), codirigido com Marcelo Pedroso, “Um Lugar ao Sol” e “Doméstica” são facilmente associados ao documentário, ainda que usem dispositivos muito próprios para guiar a criação. “Estes dispositivos propõem uma série de premissas, ou quase regras. Estas regras aparentes me colocam num lugar de mundo que já cria, a priori, uma experiência muito única, incontornável”, comenta. No filme “Doméstica”, por exemplo, adolescentes deviam filmar suas respectivas empregadas por uma semana e, em seguida, entregar a Mascaro o material bruto.

Cena de “Doméstica”, experimentação documental com jovens usando seu ponto de vista para mostrar o mundo solitário das domésticas

Documentários com ares de ficção

Em contrapartida, “Avenida Brasília Formosa” já traz encenações diversas realizadas por seus personagens, seja reencenando e interpretando para a câmera eventos cotidianos, seja assumindo o papel de outra pessoa. Isso é particularmente acentuado em seus curtas, “As Aventuras de Paulo Bruscky” (2010), um híbrido virtual, feito em machinima, dentro da rede social Second Life, sobre o artista Paulo Bruscky, e “A Onda Traz, o Vento Leva” (2012), em que refina sua estética, apropriando-se dos elementos documentais para criar uma dramaturgia e uma decupagem rigorosa.

“‘Ventos de Agosto’ pode ser considerado meu ‘primeiro’ longa de ficção, mas toda minha pesquisa prévia como documentarista e artista visual é contaminada por narrativas partilhadas, por uma certa performance que emana desses personagens com quem me envolvo e cohabito, pela autoficção que é proporcionada a partir desses encontros, sejam eles espontâneos ou não”, comenta o cineasta, que já teve seus filmes exibidos em festivais como Rotterdã, IDFA, CPH:DOX, Oberhausen, Clermont Ferrand, Bafici, entre outros. “E em se tratando de um filme que tem inclusive o vento como ponto de partida, é ainda mais difícil demarcar com precisão essas fronteiras. O vento sempre assopra para onde você menos espera. Os Ventos de Agosto na Zona Intertropical são ventos com bastante identidade. Atuam numa região específica e possuem uma sonoridade ímpar e inesquecível. Para mim, representam a força incontornável da natureza em contato com a força dos corpos, vivos ou mortos”, complementa.

Cena de “Ventos de Agosto”, onde personagens jovens e velhos estão presos à ilha e às suas curiosidades até absurdas. © Beto Figueiroa

Sexo e destino entre cocos e túmulos

“Ventos de Agosto” acompanha os namorados Shirley e Jeison, numa vila do litoral alagoano. Ela, que deixou a cidade grande para cuidar da avó e deseja ser tatuadora, trabalha numa plantação de coco dirigindo trator; ele, um rapaz que também trabalha na fazenda de cocos e nas horas vagas faz pesca subaquática de lagosta e polvo. A região é palco dos ventos alísios que emanam da Zona de Convergência Intertropical, em que o mês de agosto marca a chegada das tempestades e das altas marés. Os ventos crescentes do mês alteram o cotidiano do casal.

O longa, que foi produzido com R$ 50 mil e finalizado com mais R$ 100 mil, nasceu a partir de uma pesquisa que o diretor fez sobre o avanço do mar no litoral brasileiro, em que se deparou com várias mansões abandonadas e destruídas pelas ondas. Intrigava-lhe essa arquitetura que em menos de 30 anos de sedimentação já virou ruína. “A  ocupação desordenada do litoral do Nordeste brasileiro teve um grande impulso nos anos 70 e 80. Antigas vilas de pescadores ou paradisíacas reservas naturais cederam lugar à ocupação imobiliária desordenada com vários crimes ambientais para atender ao luxo de uma segunda casa perto do mar. Entre a ganância humana e o fenômeno global natural, no filme, os personagens convivem cada um a seu modo com o avanço do mar. Mas ao invés de uma mensagem de alarde sensacionalista, fria e distante, o filme se concentra num pequeno cemitério à beira mar que está sendo engolido pelas ondas. É um filme sobre passagem, mas também sobre pertencimento e permanência”, explica sobre a gênese do projeto.

O filme também surge como uma homenagem e uma citação ao documentarista holandês Joris Ivens, que, em 1965, fez sua primeira incursão sobre o vento no filme “Pour Le Mistral”, filmado no sudeste francês, e, em 1988, lançou seu último longa, chamado “Une Histoire de Vent”, filmado na China. “Personagem dentro do filme e já de cabelos grisalhos, ele afirmou que filmar o impossível é o melhor da vida”, pontua.

Dandara de Morais e Geová Manoel dos Santos, no papel central dos jovens amantes em “Ventos de Agosto”. © Beto Figueiroa

O papel documental do ator

Para construir tal história, Mascaro se valeu de atores para encenar os papéis construídos no roteiro. Todos no filme são atores não profissionais que moram na própria vila, exceto Shirley. Para os atores não profissionais, em especial o personagem do pescador, havia bastante roteiro escrito e diálogos. “Trabalhamos alguns exercícios de improvisação e estudamos bastante as cenas”, comenta. A seleção de atores foi feita via um anúncio na vila. Mascaro conta que a escolha de Geová Manoel dos Santos para o pescador e catador de cocos foi inusitada. “Todos os pescadores vieram fazer o teste para o filme, menos o próprio. Havia feito vários testes, já pondo em prática algumas cenas. Dois dias depois, o tal Geová me procura se desculpando pela falta e me perguntando se no filme sobrara uma vaga para cantor, já que na vida real é artesão, mas sonha mesmo em ser cantor. Abri a câmera e pedi para ele cantar uma música. Quando ele acabou, já combinei as datas da gravação. Escolhi ele pela forma como me abordou, pelos desejos dele, pela forma como cantou para a câmera”, explica.

Para Shirley, interpretada pela atriz Dandara de Morais, Mascaro tentou construir uma personagem feminina intrigante que, mesmo forçada a viver num lugar praieiro e pacato, reafirma a urbanidade e a cultura punk. “A construção da personagem dela foi fruto do laboratório de vivência que ela fez antes do início das filmagens. Ela foi imaginando que iria gravar duas diárias e terminou gravando vinte. Até duas semanas antes das gravações, a personagem dela não existia no roteiro. Foi todo construído e elaborado a partir da vivência dela na casa de uma senhora bem idosa e cadeirante. Dandara passou uma semana ajudando a idosa a ir ao banheiro, preparando comida para ela, colocando-a para dormir, agasalhando-a quando sentia frio, escutando suas histórias. Depois de uma semana de convívio, a senhora já a estava chamando de ‘minha netinha’ sem mais distinguir realidade e ficção”, comenta.

No filme, o próprio Mascaro faz um papel, o do pesquisador de som de ventos, personagem que quebra a narrativa, introduzindo um sujeito que provoca as alterações no cotidiano.

Via o pesquisador de som de ventos fica evidente o papel da sonoplastia na narrativa de “Ventos de Agosto”, que trabalha com poucos diálogos. “Como o vento é nossa matéria-prima fundamental e é invisível, ele se materializa no filme especialmente através do som e de como se manifesta através da visualidade. Então, além das vozes, esta suspensão sonora perpassa todo o projeto estético do som do filme, incluindo os ruídos de cena. O som foi quase que totalmente reconstruído do zero”, afirma Mascaro. Além disso, o cineasta optou pela dublagem total das vozes em estúdio – o que, às vezes, fica evidente para quem assiste. O diretor justifica a escolha. “Foi um exercício muito divertido. Ouvir um som anterior, reempostar a voz, reposicionar o corpo, ressignificar o próprio personagem. Gravamos as vozes propositalmente com um microfone para voz de ópera e, como efeito disso, as vozes flutuam sobre os personagens, mais do que saem da boca deles”, complementa sobre a sonoplastia do filme.

O trabalho dramatúrgico, em “Ventos de Agosto”, vai além do uso de atores, de um roteiro-guia e da construção sonora. Muito dele vem da maneira como Mascaro registra as cenas, sejam as naturais, sejam as encenadas. A construção visual utiliza-se muito de planos estáticos e do extracampo, com um ritmo que respeita a integralidade da ação. “Pensar a cena para mim é preencher o espaço que está no extracampo para tencionar o que está em campo. E os planos estáticos, em determinados contextos, potencializam de forma quase violenta esta dualidade dentro-fora do quadro. Mas naturalmente isso não é uma regra, nem plano estático para mim é um dogma”, aponta.

Dandara de Morais conquistou o prêmio de melhor atriz por “Ventos de Agosto”, no último Festival de Brasília. © Beto Figueiroa

Matiz pernambucana

Gabriel Mascaro é mais um dos vários cineastas pernambucanos que tem se destacado no cenário cinematográfico brasileiro e internacional, conjugando força narrativa e ousadia temática, aliada, em geral, a questões sócio-políticas contundentes. A geração atual de cineastas tem se beneficiado muito das políticas culturais do governo do Estado, que tem injetado cada vez mais verba na área cultural, inclusive cinematográfica, incomparável a outros Estados brasileiros. A produtividade em tão curta carreira de Mascaro vem, em grande medida, disso, ainda que seus filmes nem sempre contem com apoio direto do Estado, mas aproveitam de profissionais formados nesse período e de um clima propício à feitura e recepção desses filmes.

Se “Ventos de Agosto” e “Valeu Boi!” parecem estar menos engajados politicamente em revelar um aspecto do Brasil em geral acobertado, indo para o viés existencial e memorialista, diferentemente da geração pernambucana que se consagra atualmente, Mascaro não renega sua verve política, tão forte em seus documentários anteriores – em especial em “Um Lugar ao Sol” e em “Doméstica”, que tentam esquadrinhar as relações entre diferentes classes. “Meus trabalhos, em parte, discorrem sobre relações de poder. E elas se manifestam em vários níveis, em contextos sociais diferentes, na cidade ou no campo, na Terra ou na Lua. Já tive uma cena toda filmada em Júpiter, uma ilha do programa Second Life. Fiz um trabalho recente ainda inédito no Brasil chamado ‘Memórias de meu Tempo em Marte’, que utiliza unicamente imagens filmadas por soldados americanos na guerra do Afeganistão. Estou com um trabalho na Bienal de São Paulo chamado ‘Não É sobre Sapatos’, que discute a estética e a política da imagem utilizada para perseguir manifestantes políticos no Brasil”, comenta.

Cena de “Um lugar ao Sol” em que Mascaro discute o status e o poder dos moradores das coberturas dos prédios à beira-mar de Recife

Formação eclética

Talvez, uma das razões que tenha feito Mascaro criar um cinema tão diverso em termos de técnicas e escolhas narrativas – videoinstalações, documentário, ficção, machinima, hibridismo etc. – seja sua formação. O cineasta, na juventude, queria ser músico e não tinha qualquer interesse cinéfilo. Foi durante a graduação em Comunicação, nos corredores da UFPE, que Mascaro teve contato com o cinema, através da Símio Filmes, coletivo formado pelos cineastas Marcelo Pedroso, Daniel Bandeira e Juliano Dornelles. Suas primeiras pesquisas estéticas foram junto com o realizador Marcelo Pedroso, quando começaram a buscar as primeiras referências para o filme “KFZ-1348”. Descobriram juntos “Wavelength”, do Michael Snow, e os trabalhos do Stan Brakhage e Johan van der Keuken. Contribuiu muito à sua visão também o Festival Videobrasil, em São Paulo, como espectador comum, em que viu uma série de outros trabalhos que dilatavam a ideia de cinema para outros caminhos.

Nesse período, Mascaro fazia parte da Símio. “Éramos universitários e começamos a fazer filmes em coletivo. Ficamos amigos e de repente viramos empresa. Esta aceleração da lógica que pressiona os coletivos a virarem empresa é algo muito violento. O que motivava a gente a estar junto não era a lógica da empresa, mas sim fazer filmes e cooperar um com o outro de forma mais lúdica. E eu precisei sair da lógica de empresa para resgatar a ideia de cooperação que eu tinha com os ‘símios’”, comenta sobre o por quê de ter saído da Símio, até hoje em atividade, para abrir sua produtora atual, a Desvia Produções. “Abri uma outra empresa com minha esposa e produtora Rachel Ellis, uma inglesa que fez a loucura de trocar Londres por Recife. Terminou que Rachel trouxe uma estratégia de produção bastante arejada para meus filmes, colaborando inclusive na roteirização do ‘Ventos de Agosto’ e do curta ‘A Onda Traz, o Vento Leva’. Todos estes trabalhos recentes possuem uma marca muito forte da mão dela também. Se ela ver coisa ruim no material bruto, pede até para eu refilmar”, complementa brincando.

Moda e vaquejadas

Entre um festival e outro, em que participa com “Ventos de Agosto”, Gabriel Mascaro monta sua próxima incursão no cinema, o longa inscrito em editais como “Valeu Boi!”, mas que o cineasta garante que mudará de título até sua estreia. Pela primeira vez, o cineasta contou com um orçamento mais parrudo, de R$ 1,2 milhão, englobando recursos do Ministério da Cultura – em que foi vencedor do edital de baixo orçamento –, um edital de coprodução com Uruguai, o Hubert Bals Fund Plus a partir de uma parceria com sua coprodutora na Holanda, e o Fundo Estadual de Cultura de Pernambuco, o Funcultura.

Juliano Cazarré (à dir.) é protagonista de “Valeu Boi!”, novo filme de Mascaro sobre as vaquejadas, já filmado e em finalização

O longa tem como base a vaquejada, uma atividade que envolve agribusiness, shows e um esporte, que consiste em emparelhar um boi no meio seguido por dois cavalos. Um dos vaqueiros pega o rabo do boi e puxa, fazendo–o se desiquilibrar e cair no chão. Atualmente, a vaquejada continua movimentando a economia e a cultura no Nordeste brasileiro. O filme se concentra num grupo que trabalha nos bastidores. Um dos personagens centrais, Iremar, é responsável por limpar e preparar o rabo do boi antes de ele ser solto nessa arena. Seu grande sonho é ser estilista de moda no Polo de Confecções do Agreste. “O filme se alicerça num cenário contemporâneo de prosperidade econômica regendo signos, desenhando novas relações humanas, afetos e desejos”, enfatiza o diretor, que rodou o longa em cidades como Bezerros, Pombos, Santa Cruz do Capibaribe, Campina Grande e Picuí.

Para narrar essa história, bastante construída no roteiro, Mascaro se vale de atores diversos e tem, como protagonistas, nomes em evidência no cinema atual, Juliano Cazarré, Maeve Jinkings e Vinicius de Oliveira. “Esse filme, em especial, precisava ser preenchido com o talento dos atores que foram escolhidos, e esta ressignificação de figura pública notória de alguns dos atores, mais especificamente no caso de Cazarré, combina muito com a premissa do filme”, explica sobre a escolha. “Da mesma forma que, para mim, foi um grande deslocamento, para eles talvez tenha sido ainda maior. Tivemos a preparação de elenco de Fátima Toledo e Marçal Costa, e, seguramente, foi uma experiência muito marcante para todos”, complementa sobre como foi o trabalho com eles.

Gabriel Mascaro não para. Além de lançar “Ventos de Agosto” e de montar o novo longa, participará de um programa de Residência Artística no Wexner Center for Arts, no EUA, e será pai novamente. De fato, não parará tão cedo.

Assista aqui o trailer de “Ventos de Agosto”.

 

Por Gabriel Carneiro

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